Democracia e bem viver: semear vida onde só há morte – 07/02/2019

Foto: Governo do Estado do Rio Grande do Sul.

Democracia e bem viver: semear vida onde só há morte

José Geraldo de Sousa Junior

Renata Carolina Corrêa Vieira

“¿Cómo seguir sembrando vidas donde sólo hay muerte?” Assim terminou sua fala, a Professora Catherine Walsh, em Conferência de Encerramento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, no II Seminário de Formação Política do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Movimentos Sociais e Culturas – GPMC, em setembro de 2018, na cidade do Rio de Janeiro, cujo tema do encontro era “Pesquisar, desobedecer e agir para o bem viver”.

Militante dos direitos indígenas e autora de livros sobre educação intercultural e pedagogia decolonial, teorias construídas com forte influência de Paulo Freire, com quem trabalhou nos anos 1980, se referia às sistemáticas violações de direitos humanos que os povos indígenas e os povos tradicionais, de matriz africana ou não, continuam sofrendo na América Latina desde a primeira invasão de Cristóvão Colombo às Américas. Vítimas de genocídio e de etnocídio, com contornos de epistemicídio,  pelos grandes projetos de desenvolvimento econômico nos países chamados “periféricos”, os povos indígenas e as comunidades tradicionais seguem a luta pela sobrevivência e pela preservação do meio ambiente.

A crítica da autora norte-americana, radicada no Equador, se refere, principalmente, a países que, mesmo depois de terem consagrado, em suas Constituições, direitos como o bem-viver e o da natureza (Pacha Mama), a exemplo de Bolívia e Equador, ainda mantêm os mesmos projetos de morte, quando se trata do plano de desenvolvimento econômico. Projetos de mineração, construção de barragens e hidroelétricas, extração de madeira, extensão das fronteiras agrícolas para o monocultivo representam modelos de desenvolvimento de uma classe dominante cujo projeto de poder coincide com uma política de extermínio: o neoliberalismo.

Assistimos todos constrangidos e atônitos nesse início de 2019 às notícias sobre o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), o número confirmado de mortos está em 65 e o de desaparecidos, 279, e crescendo, conforme matéria publicada na BBC Brasil. Ainda de luto pelo maior atentado ambiental do mundo praticado pela inação negligente de uma operação que resultou no vazamento de minério, ocorrido na região de Mariana (MG), em 2015, que gerou uma enxurrada de mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos, a morte de 19 pessoas, a destruição do modo de vida local de centenas de pessoas, a morte de um rio e incalculáveis danos para a biodiversidade local, voltamos a viver o mesmo pesadelo.

Diante de mais uma tragédia socioambiental provocada pela exploração de minério, a pergunta da conferencista volta a ecoar e reverberar: “¿Cómo seguir sembrando vidas donde sólo hay muerte?”, “¿cómo cultivar buenas semillas?”, “¿Cuáles son las semillas que debemos plantar?”Tais inquietações nos levam a um fio condutor de reflexão que perpassa pelo questionamento se é possível conciliar direitos humanos e neoliberalismo, em última instância, se é possível conciliar neoliberalismo e democracia.

Enquanto “um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante”, a globalização neoliberal, nas palavras de Avelãs Nunes, é apoiada em aspectos não só econômicos, mas também filosóficos, ideológicos e culturais, que visam retirar a dimensão humana da vida, mercantilizá-la, transformá-la em mercadoria. A incompatibilidade entre efetivação de direitos humanos e a globalização neoliberal é tema central de análise em sua obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.

Em entrevista concedida para o Observatório da Constituição e da Democracia (Brasília: Faculdade de Direito da UnB, C & D n. 21, abril de 2008, pp. 12-13), sobre a terceira onda da globalização (fase neoliberal), o autor afirma que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite”.

Alinhado a uma política neoliberal, logo no início de seu mandato, o atual Presidente da República, fez pronunciamentos de que em seu governo haveria flexibilização das regras da mineração e do licenciamento ambiental, inclusive com possibilidade de exploração de minério dentro de terras indígenas (Disponível aquiaqui e aqui). No primeiro dia de seu mandato, a competência da Funai para demarcação de terras indígenas foi retirada, que passa a ser do Ministério da Agricultura, chefiado por uma ruralista.

São direções, atitudes e pronunciamentos que se põem a contracorrente das motivações distributivistas que, mesmo no mais exacerbado utilitarismo cuidaram de imprimir à economia um sentido político, que a insere no campo do que já foi chamado de teoria dos sentimentos morais (Adam Smith). E isso é inaceitável porque escancara um curso que busca imprimir em nosso País, aprofundando desigualdades que sacrificam o nosso povo, projetos de acumulação e de desenvolvimento entreguistas e excludentes, distanciando-se da aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, que em países avançados, capitalistas e não capitalistas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida.

No que tem sido chamado de processo de desdemocratização e de desconstitucionalização que avassala o país desde 2016, como consequência de um golpe político que criou as condições para o reagrupamento dos interesses econômicos neoliberais, é preciso resistir e defender o projeto democrático-constitucional que organizou o social para vencer e superar as desigualdades.

Tudo menos o conformismo, que acentua a naturalização de condições que, longe de decorrer de um destino, está, certamente, ao alcance da capacidade humana e política de definir ações transformadoras da realidade:os fenômenos sociais são, antes e acima de tudo, produtos da prática humana, estando, pois, aptos a assumirem contornos singulares conforme a época, a sociedade e a cultura, abrindo-se a essas mudanças.

Por isso, retomando à ideia de semente e às perguntas da autora citada¿cómo cultivar buenas semillas?” e “¿Cuáles son las semillas que debemos plantar?” são as lutas que preparam o terreno para afirmar modos de vida e é essa percepção que está na raiz do conceito que o projeto social implantado pelo movimento de redemocratização, com a Constituição de 1988 fecundou. Vale dizer, conferir ao meio ambiente a condição de bem comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, da atual e das futuras gerações e salvaguardar, no interesse intergeracional, incluindo o modo de produção e de reprodução da existência social dos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, nossa referência de passado e nossa aliança ética de futuro.

Isso representa uma chamada para que se reponha na esteira da defesa da Constituição e da Democracia, exigências acerca das reformas estruturais pelas quais passa o debate hoje, vale dizer, a nota social que se vai perdendo e que acaba por retirar a dimensão ético-política que deve presidir a sua orientação. Cuida-se, pois, de definir políticas públicas, inclusive no que concerne à reforma do Estado e dos serviços públicos, que sejam obedientes a valores. Na medida de seu potencial transformador das instituições e dos perfis de desempenho, esses valores é que vão permitir organizar, na sociedade e no Estado, padrões de cooperação, solidariedade e participação, por meio dos quais, à lógica excludente e alienante que se sustenta no primado da acumulação monopolista, se oponha, como prioridade de ação, da sociedade e do governo, a lógica democrática que se sustenta no primado de uma equitativa distribuição, enquanto se oriente para projeções que garantam o direito à vida plena, bem vivida, vida decente.

José Geraldo de Sousa Junior e Renata Carolina Corrêa Vieira são pesquisadores do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua.

Fonte: https://constitucionalismo.com.br/ 

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