“Encontramo-nos em um período da história no qual nos sentimos, às vezes, impotentes na busca de soluções para os problemas propostos. Em tempos em que a paz está ameaçada, é preciso observar criticamente a realidade com olhar de quem acredita na superação por meio da fraternidade. A superação da violência se torna, assim, um sinal do amor que Deus nutre pelo ser humano criado para ser irmão e não rival. Como cristãos, somos chamados a construir o Reino da verdade e da graça, da justiça, do amor e da paz, pois somos todos irmãos. “
Campanha da Fraternidade 2018: Texto-base, CNBB.
Há cinquenta anos, o Papa Paulo VI, dirigindo-se às pessoas de boa vontade, dedicou o primeiro dia do ano à celebração da Paz: “Desejaríamos que depois, cada ano, esta celebração se viesse a repetir, como augúrio e promessa, no início do calendário que mede e traça o caminho da vida humana no tempo; que seja a paz, com seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processar-se da história no futuro. ” Desde então, a tradição pontifícia tem sido mantida com a divulgação de mensagens papais celebrando o dia da paz e promovendo profundas reflexões sobre seu significado e, sobretudo, clamando por sua realização.
Na mensagem para este ano que se inicia, divulgada ainda em 24 de novembro de 2017, o Papa Francisco convoca nossa reflexão e engajamento para a questão dos migrantes e refugiados, homens e mulheres em busca da paz: “Com espírito de misericórdia, abraçamos todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental. ” Mas a dramática situação dos migrantes e refugiados do mundo também espelha o desamparo de milhares de homens e mulheres em nosso país, cada vez mais excluídos dos benefícios culturais, econômicos e sociais: agredidos e expulsos de suas terras ancestrais, como os indígenas e quilombolas que lutam pelo reconhecimento de direitos previstos na Constituição; impedidos de se fixarem e de retirarem seu sustento da terra no campo, pelo avanço da apropriação privada da terra para a exploração econômica que não respeita o valor constitucional da função social e ambiental da propriedade, como é o caso dos pequenos agricultores e dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra; transformados em párias nas cidades, que não lhes reconhece o direito a uma moradia digna e aos serviços e às políticas públicas correspondentes, os sem-teto que permanecem condenados a vagar pelas ruas numa pungente sobrevida de invisibilidade, privações e violências cotidianas; os trabalhadores e trabalhadoras submetidos cada vez mais ao empobrecimento causado pelo desemprego e pela exploração de sua força de trabalho, agora ainda mais desprotegidos diante da legislação trabalhista recém aprovada. Importante lembrar também a persistente infâmia do trabalho escravo, no campo e nas cidades do Brasil, cujo combate institucional reflui na mesma medida em que avançam as chamadas “reformas” impostas ao povo pelos agentes políticos e econômicos encastelados atualmente no poder, a despeito da flagrante ausência de representatividade e legitimidade democrática de seu projeto jamais aprovado pelas urnas. São, infelizmente, inúmeras as situações de semelhante desamparo e injustiça, que impedem a realização plena da paz, acirrando os conflitos sociais e produzindo cada vez mais insegurança e violência.
Neste ano de 2018, a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – tem como tema “Fraternidade e superação da violência”, justamente para conclamar-nos à urgente missão de enfrentamento e superação de uma cultura de ódio que tem crescido a olhos vistos em nossa sociedade, e que se expressa nas diversas formas de violência a que estamos todos submetidos, nessa atual conjuntura de retrocessos sociais, de obscurantismo, de intolerância e de acelerada supressão de direitos.
No texto-base da Campanha, a CNBB, atenta às vicissitudes do contexto histórico que vivenciamos e da aparência de normalidade institucional insistentemente retratada pelos meios de comunicação com vistas à aceitação acrítica e apática desse estado de coisas, reconhece a complexidade do problema da violência, para além de uma mera questão de segurança pública a reclamar respostas mais repressivas, e chama a nossa atenção criticamente para a tragédia brasileira, em contraste com a imagem idílica de um país pacífico, racialmente democrático, ordeiro e cordial, que frequentemente projetamos.
“É preciso reconhecer no outro que sofre com a violência a nossa própria humanidade agredida, rompendo com a indiferença (“não é comigo”, “o que eu tenho a ver com isso”), repudiando a intolerância – e o ódio que a acompanha e envenena as relações sociais e familiares -, mas, sobretudo, exigindo e lutando por justiça, essa medida fundamental de equilíbrio e igualdade de tratamento, sem a qual não é possível atingirmos a paz.”
O documento da CNBB ressalta também as principais vítimas da violência no Brasil contemporâneo, seja por meio de atos de agressão física e psicológica (violência direta), seja por meio de modelos de organização e de práticas sociais (violência institucional), seja ainda por meio de práticas naturalizadas de violência, sobre as quais são elaborados “discursos para apresentar razões e justificativas como se uma ação violenta fosse devida, uma consequência de determinadas condutas da própria pessoa que sofreu a violência” (violência cultural). Muito frequentemente, os grupos mais vulneráveis da sociedade são alvo dessas três formas estruturais de violência combinadas. São os jovens negros e moradores das periferias a tombar diariamente na irracional e corrupta “guerra às drogas”, que há anos tem servido como justificativa para a prática da violência policial; as crianças e adolescentes vítimas da violência sexual e doméstica, praticadas, muitas vezes, por familiares ou vizinhos; as mulheres agredidas e assassinadas pelos parceiros ou ex-parceiros machistas que não aceitam conviver com a autonomia de suas vítimas; os homossexuais perseguidos pela intolerância e homofobia de seus algozes individuais e institucionais; os ativistas de direitos humanos, religiosos, líderes comunitários e sindicalistas perseguidos e assassinados em razão de suas bandeiras de luta e das causas públicas que defendem; os estrangeiros, migrantes e refugiados expulsos pela guerra, pela fome e pela degradação ambiental, como alertou o Papa Francisco; os pobres, cada vez mais, excluídos da atenção de políticas públicas de assistência, saúde e educação; as vítimas da violência no trânsito, fenômeno que reflete a agressividade crescente das relações sociais cotidianas, a cultura individualista e a ineficiência das políticas de transporte coletivo; as vítimas da ineficiência do aparato judicial e policial, que tem contribuído para aumentar a crise de congestionamento e indignidade do sistema carcerário, sem, no entanto, afastar a sensação de seletividade e impunidade que alimenta o imaginário social; as vítimas, enfim, da intolerância e do fanatismo religioso, especialmente contra as religiões de matriz africana, alvo frequente de preconceitos e agressões a suas práticas e templos.
Tornar-se consciente dessa realidade, na extensão e complexidade das múltiplas formas de violência em que ela se apresenta, já é o primeiro passo para superá-la. Mas, é preciso mais do que apenas esse olhar crítico. É preciso reconhecer no outro que sofre com a violência a nossa própria humanidade agredida, rompendo com a indiferença (“não é comigo”, “o que eu tenho a ver com isso”), repudiando a intolerância – e o ódio que a acompanha e envenena as relações sociais e familiares -, mas, sobretudo, exigindo e lutando por justiça, essa medida fundamental de equilíbrio e igualdade de tratamento, sem a qual não é possível atingirmos a paz.
Por Comissão Justiça e Paz