Os povos indígenas no contexto de violação de direitos humanos no Brasil – 07/08/2017

A Comissão Justiça e Paz de Brasília (CJP) realizou, neste 07 de agosto, no Auditório Dom José Freire Falcão, mais uma edição das “Conversas de Justiça e Paz” do ciclo de 2017. O tema deste encontro foi “Os povos indígenas no contexto de violação de direitos humanos no Brasil”. A mesa, moderada pelo membro da CJP Mauro Noleto, foi composta pelos expositores convidados: Cleber Buzatto, Secretário-Executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Eliseu Lopes Guarani-Kaiowá, membro do Conselho Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul; além do Presidente da CJP, José Márcio de Moura, e do Padre Ernanne Pinheiro, representando a Arquidiocese.

Primeiro a expor, Cleber Buzatto apresentou dados estarrecedores sobre o quadro de violações e violências a que estão sujeitos os povos indígenas brasileiros. A começar pela omissão e morosidade na regularização de Terras Indígenas, que, até 2015, já se contavam 725 casos. Naquele ano, de acordo com Buzatto, foram registrados 137 assassinatos; 31 tentativas de assassinatos; e 87 mortes por lesões autoprovocadas. Atribuída à omissão do poder público, a mortalidade na infância (0 a 5 anos) registrou 599 casos. Para Buzatto “os povos indígenas tem sofrido ao longo da história um processo de colonização extremamente desrespeitoso, e que nos últimos anos se agravou imensamente”. Sua exposição procurou, assim, apresentar um recorte da realidade que marca o atual contexto indigenista no Brasil.

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Lembrou que o Brasil, de acordo com o IBGE, possui 305 povos indígenas, que falam 274 línguas diferentes, e que estão localizados e vivem em todas as regiões do país. Seu “recorte” acentuou 5 temas centrais: vulnerabilidade sociocultural; violência contra comunidades e lideranças indígenas; ataque aos direitos constitucionais dos povos indígenas; resistência dos povos a esses ataques; e sua luta pelo bem-viver.

Entre os casos mais cruéis de violência, Cleber Buzatto destacou o “massacre de Caarapó”, ocorrido em julho de 2016, no Mato Grosso do Sul. Homens armados em quatro caminhonetes e um trator, à noite, atacaram violentamente os indígenas Guarani e Kaiowa acampados no tekoha Guapoy, na Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipeguá I, localizada no município de Caarapó (MS), no mesmo local onde havia sido assassinado o agente de saúde Clodiodi de Souza no mês anterior. Um indígena morreu e outros seis foram feridos. O ataque foi registrado em vídeo pelos próprios indígenas. As imagens do momento do ataque e do funeral da vítima foram reproduzidas durante a exposição.

Buzatto então enfatizou que esses casos de violência não são esporádicos ou isolados, mas tem ocorrido em sequência, como algo sistemático. Citou os casos ocorridos este ano de 2017 no Maranhão contra o povo Gamela e o caso ocorrido no início deste mês de agosto, no município de Palhoças-Santa Catarina, contra o povo Guarani-Mbyá. Com relação a este último, contou que há vídeos circulando na internet, que incitam a população a colocar fogo nos barcos e nas habitações dos Guarani-Mbyá, o que de fato ocorreu.

Para o Secretário-Executivo do CIMI, “esses ataques estão ligados a um conjunto de ataques contra os direitos constitucionais dos povos indígenas que estão sendo patrocinados, alimentados, postos em prática por setores ligados ao agronegócio, especialmente a bancada ruralista no âmbito da Câmara dos Deputados (…), que passaram a fazer e alimentar discursos de incitação à violência, de incitação ao crime contra os povos indígenas”.

Em sua exposição, Buzatto enumerou diversos instrumentos que estão sendo usados contra os direitos dos povos indígenas, no âmbito administrativo, mas também nas esferas legislativa e mesmo judicial. Citou como principais medidas as seguintes: 1) Portaria 303/12 e Parecer da AGU/Temer 2017, que trata do chamado “marco temporal” para fins de demarcação; a PEC (proposta de emenda à Constituição) 215/00, que transfere para o Poder Legislativo a competência para demarcação e o reconhecimento de terras indígenas e quilombolas; o PL (projeto de lei) 1610/96 sobre mineração em terras indígenas; a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Funai/Incra (2016/2017), que criminaliza praticamente todo o movimento indigenista brasileiro (antropólogos, missionários, lideranças indígenas, procuradores da república, religiosos, servidores públicos etc.); o PLS (projeto de lei do Senado)654/14, que flexibiliza o licenciamento ambiental; o PL 4059/12, que autoriza a venda de terras para estrangeiros; e o Decreto 9010/17, que promoveu corte de pessoal da Funai.

Na parte final de sua exposição, Buzatto alertou para o grande risco de que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, em julgamento marcado para o próximo dia 16 de agosto, a tese do “marco temporal”, segundo a qual somente terão direito à demarcação as comunidades indígenas que comprovarem estar na posse de suas terras desde o dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição do Brasil, ou que pelo menos comprovem que naquele dia estavam em conflito pela posse da terra reivindicada como tradicional. Se confirmada essa tese – alertou -, haverá enormes retrocessos, tanto para as comunidades que aguardam “exiladas” a conclusão dos processos de demarcação em curso, mas também para aqueles povos que já tiveram suas áreas demarcadas e que poderão ser expulsos, para dar lugar à exploração agropecuária, de mineração ou mesmo imobiliária, como tem ocorrido no estado de Rondônia.

Ao finalizar, Cleber Buzatto agradeceu a oportunidade com a esperança de que o debate promovido pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese possa servir para engajar e comprometer mais pessoas com a causa indígena, uma causa de todos os brasileiros.

A palavra foi então passada para o segundo expositor, Eliseu Guarani Kaiowá, que atualmente exerce a função de coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. Ao se apresentar, Eliseu localizou seu lugar de fala: “Sou representante do povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Moro num acampamento, na verdade numa retomada, e toda minha família mora nessa retomada embaixo de lona preta, e vive toda essa situação que vocês viram até agora”.

Ao longo de sua dramática exposição, Eliseu procurou contar a sua “realidade”, algo que dia a dia seu povo enfrenta no estado do Mato Grosso do Sul, estado que abriga mais de 70 mil indígenas: “acampamento em beira de estrada, matança de lideranças, expulsão das nossas terras, impunidade, criminalização, racismo (…) quando mata nossas lideranças a gente não encontra o corpo (…) eu não sei se alguém daqui já ficou um ou dos dias embaixo de lona, mas a nossa realidade é sempre assim. Nossa luta é pela demarcação de terra, é uma luta por espaço mesmo. As reservas que fizeram pra nós são muito pequenas para a quantidade de indígenas que vivem no estado, por isso é que estamos fazendo as retomadas. Enfrentamos por isso os fazendeiros, a polícia, a justiça, tudo mesmo. Aquelas terras são a nossa terra mesmo, que a nossa história é que conta isso. É um absurdo que os próprios governantes estão fazendo com nosso povo”.

Lembrou que a região das terras indígenas e os acampamentos de retomada já tiveram a visita de organismos internacionais, como as comissões do Parlamento Europeu e das Nações Unidas. Mesmo assim, os ataques paramilitares promovidos por ruralistas não cessaram, ao contrário, tem aumentado nos últimos anos sem qualquer auxílio dos poderes constituídos, como foi o caso de Caarapó, entre outros tantos casos. Lembrou ainda que o conflito envolvendo os Guarani do Mato Grosso do Sul, que em tudo se revela como um verdadeiro genocídio, já chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos e foi objeto do relatório da Relatora Especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, que esteve no Brasil em março de 2016. Eliseu denunciou:

Nós estamos sendo atacados de todos os lados. Além de sermos expulsos de nossas terras, criminalizados, estamos sendo atacados por essas leis que querem mudar o nosso direito. Eu quero também registrar que hoje no Mato Grosso do Sul estamos sendo mortos até no hospital, porque quem trabalha no hospital, no fórum, na delegacia são os filhos dos fazendeiros. O nosso medo é até de ir pro hospital. Imagina se uma liderança doente for pro hospital, ele pode ser matado na hora. Essa denúncia estamos fazendo. Eles tiram até os órgãos dos indígenas. Alguns vão com dor de cabeça, dor de barriga e então chega ao óbito. Eu sou ameaçado de morte, a minha cabeça não sei quantos mil que vale. E estamos sendo matados não só de bala, mas com essa caneta que não tem espírito.”

Ao encerrar, Eliseu reconheceu que seu povo não tem alternativa a não ser lutar, resistir, permanecer nas retomadas, e denunciar cada vez mais toda essa violência que estão sofrendo, como tentativa de “garantir a nossa sobrevivência, a sobrevivência das crianças Guarani Kaiowá, o futuro do nosso povo.”

JpegComo já era esperado, as exposições mobilizaram bastante a audiência presente no auditório, mas aqueles que se manifestaram por meio de comentários no perfil da CJP no facebook, que transmitiu ao vivo toda a sessão. As intervenções, comentários e perguntas dirigidas à mesa ressaltaram aspectos importantes da questão indígena. Como a manifestação de Francisco Arara, do povo Arara do estado do Acre, na fronteira com o Peru, que lembrou que as terras indígenas são terras da União, “terra de vocês também, e que nós muitas vezes estamos lá derramando nosso sangue pra cuidar do que é de vocês também, do que é nosso. Por isso não é só uma luta dos povos indígenas, mas de toda a sociedade brasileira.”

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Antônio Costa, ex-presidente da Funai, demonstrou apoio à causa indígena contra o que chamou de ditadura instalada no país; Guilherme Delgado classificou como genocídio o quadro exposto, chamando a atenção para o número 80 vezes maior do que a média nacional de suicídios registrados entre os indígenas, e declarou que “quando uma população é atacada por todos os lados, sem se deixar nenhuma via de saída, o agressor está chamando para o enfrentamento. É morrer ou morrer, mas precisamos sair desse impasse, porque genocídio não pode ser uma solução.”

JpegÚnica mulher a se manifestar, Jussara, do movimento de mulheres camponesas, lembrou que, assim como a causa indígena, também o reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos causa bastante preocupação neste contexto que vivemos, e que inclusive poderá sofrer retrocessos no mesmo julgamento marcado para 16 de agosto no STF. Para Jussara “o povo na cidade está de costas para a luta no campo. E nós poderemos ser um povo sem território. O povo na cidade pensa que essa luta é apenas dos indígenas, dos quilombolas, dos sem-terra, mas não, essa é uma luta de todo o povo brasileiro.”

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Após as manifestações dos expositores, em diálogo e conversa com a audiência, a sessão foi encerrada com as manifestações do presidente da CJP-DF, José Márcio de Moura, e do padre Ernanne Pinheiro, que agradeceu as contribuições de todos, especialmente dos expositores, Cleber e Eliseu. Padre Ernanne procurou sintetizar todo o debate, destacando três palavras-chave: genocídio, grito e urgência, “que interpelaram as consciências de todos nós”. Agradecendo, finalmente, a presença de todos, Padre Ernanne citou a seguinte sentença de A. Lincoln: “pecar pelo silêncio quando se devia protestar, transforma homens em covardes”.

Por Comissão Justiça e Paz

Assista a Conversa na íntegra:

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