A pandemia provocada pelo Covid-19 também pode nos ajudar a refletir sobre o papel da imprensa na sociedade. No momento em que seguimentos conservadores, inclusive no Brasil, tentam desacreditar e até mesmo colocar o jornalismo como descartável, a mídia, mais uma vez, apresenta-se para representar um de seus papéis, ou seja, o de colocar o mundo alerta para uma tragédia. Assim, enquanto alguns pregavam a onipotência das redes sociais, que têm o seu papel social muitas vezes discutível, é a imprensa – livre, profissional e estruturada – a grande responsável por veicular a informação tão necessária para manter a coesão social neste momento de crise. Isso não impede a reflexão sobre a parcialidade e até omissão desta mesma imprensa quanto à cobertura de temas importantes para a coletividade.
O que seria do mundo, neste momento em que uma pandemia ameaça de morte um número incalculável de pessoas, sem o trabalho da imprensa? Quando muitos acreditavam que o Covid-19 permaneceria pelas bandas da Ásia, a cobertura midiática parecia uma verdadeira chatice, sensacionalismo ou, como disse o presidente Jair Bolsonaro, a provocação de uma histeria, uma fantasia. Estaria mesmo a imprensa dando mais valor à pauta que o necessário? Afinal, a morte de chineses comunistas não tinha valor algum, não é mesmo? Importante seria, apenas, retirar os nacionais de outros países daquele “inferno”. E o Brasil também fez isso.
Mas o vírus chegou por aqui. E não foi pelas malas da imprensa. Esta, sim, trouxe informação, conhecimento, aprendizado. Até lavar a mãos – gesto que deveria ser cotidiano, o cuidado com o outro, o zelo nas relações, tudo isso, estamos reaprendendo com especialistas graças à mediação jornalística. Claro, podemos questionar muitos pontos da cobertura da imprensa, o que não retira o seu papel fundamental de trabalhar pelo interesse público, pelo menos neste caso.
Por outro lado, o que chega ao cidadão por meio das mídias sociais é um quê de dúvidas. Não temos certeza se a informação é verdadeira, se é fakenews. Mas, mesmo assim, as pessoas propagam, disseminam, até mais rápido que o vírus, e muitos o fazem pelo simples desejo de ajudar, de colaborar nesse momento de tensão, mesmo sem saber que a mensagem pode ter sido produzida por pessoas mal-intencionadas. E quem acaba por tentar desconstruir essa teia de desinformação, não por acaso, são os jornalistas.
Segundo teóricos da comunicação, a imprensa exerce funções independentes de “contextos comunicativos especiais, mas à presença normal dos mass media na sociedade” (Wolf, 2002, p.63). O contexto da teoria funcionalista era o de rompimento com o pensamento de poderio total dos meios de comunicação sobre as pessoas para um processo de partilha, em que emissores e receptores beneficiavam-se do processo comunicativo. Os indivíduos, antes vistos apenas como um artefato manipulado, agora se utiliza dos veículos de comunicação, responsáveis, entre outros, por manter a estabilidade e a coesão social. Exatamente como ocorre agora durante a pandemia: a sociedade está sendo mobilizada pelo mass media, ao mesmo tempo em que se utiliza da mídia para conhecer, se informar e se mobilizar contra o vírus.
A importância da imprensa para a sociedade, a qualquer tempo, deveria ser indiscutível. Mas, infelizmente, os jornalistas estão na mira de totalitaristas e de conservadores. E isto não é novidade. Não há, na história mundial, quem tenha tomado o poder sem antes ter vilipendiado a imprensa. A destruição do quarto poder geralmente antecede ao fechamento de parlamentos e ao aparelhamento do judiciário. Não à toa, as ofensivas das manifestações recentes no país, capitaneadas por redes sociais, buscam esses objetivos.
Não quero, aqui, fazer uma defesa incondicional do jornalismo brasileiro. Para além das falhas de redação e apuração, que ocorrem com frequência e devem ser evitadas a todo o custo, há algo mais perverso ainda: a defesa de interesses que não são o do público. E isso não vem de agora. A imprensa, que teve suas origens no ideal de liberdade burguês, assim como este, cedeu sua inspiração para servir aos interesses do mercado. Não é que não se veja mais pauta de interesse público nas matérias veiculadas pela mídia, muitas ainda estão lá. No entanto, o que move a grande máquina empresarial do jornalismo não é a sociedade como um todo, mas apenas parte dela. Com isso, o resultado de boa parte do trabalho jornalístico é uma cobertura com enquadramento duvidoso, superficialidade da pauta e, não raro, a retaliação de fontes que contrariem interesses.
Outra grande falha da imprensa é ignorar pautas muito mais relevantes para a agenda pública. E nisto, muito do ódio alimentado contra os políticos se deve, também, a uma cobertura superficial das discussões que ocorrem no legislativo e outras esferas de poder, principalmente naquelas em que há participação de movimentos populares para o exercício do controle social do poder público. A consequência é que o povo acaba não acompanhando o que é relevante e faz todos os políticos parecerem iguais. A mídia, quase sempre, envolve-se muito mais num roteiro de intrigas, mais próximo do enredo das telenovelas do que com a política. É um diz que me diz, um leva e traz que não contribui em nada. Enquanto isso, em alguma comissão legislativa, há um tema relevante para o cidadão em discussão, solenemente ignorado. Ou alguém acha mesmo que temas como a Reforma da Previdência teve o debate amplo divulgado pela mídia? As vozes que aparecerem eram sempre a favor, sempre! Qualquer outra voz, noutro sentido, era tida, claramente, como contra o país. E é esse discurso que foi à rua nos protestos conservadores.
Portanto, a imprensa tem, sim, de rever o seu papel de servidor público incondicional do cidadão, como faz agora perante a pandemia provocada pelo Covid-19. Mas tem de exercer essa sua vocação em todos os momentos e, também, no ambiente social e político da sociedade. Precisamos da imprensa que trabalhe pelo interesse público todos os dias, não só de vez em quando.
Allan Barbosa – Membro da Comissão Justiça e Paz.