Judiciário e Democracia – 06/06/2016

2O tema da Conversa de Justiça e Paz de junho de 2016 não é um problema específico da Região Metropolitana de Brasília. Trata-se de uma questão que não é apenas de interesse nacional, mas até mesmo internacional: a relação entre o poder judiciário e a democracia. O momento político vivido atualmente pelo Brasil justifica essa discussão, mas ela está muito além da conjuntura atual, é parte da estrutura fundamental das sociedades modernas. Para motivar o debate, foram convidados a Profa. Flávia Santinoni Vera (doutora em Direito e doutoranda em Economia, além de pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal, onde é servidora concursada) e o Dr. Néviton de Oliveira Batista Guedes (doutor em Direito, professor de Direito Eleitoral e desembargador federal do TRF – 1ª Região). Compuseram a mesa também o Pe. Ernanne Pinheiro, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, representando a Arquidiocese, e o Presidente da Comissão, José Márcio Moura.

Após saudação do Pe. Ernanne, a Profa. Flávia apresentou alguns conceitos gerais para se entender melhor o assunto. Segundo ela, as ideias de que há escassez de recursos (“dinheiro não dá em árvores”, como diziam os antigos), que as trocas são a melhor forma de diminuição dessa escassez e do papel fundamental de instituições impessoais para mediar as relações entre os cidadãos são valores fundamentais que distinguem atualmente os países mais prósperos. Nestes, a existência de regras claras e válidas em geral são essenciais para a segurança, o bem-estar social, a justiça e a inovação científica e tecnológica.

A vida moderna, especialmente nos últimos cem anos, ampliou enormemente as possibilidades e os direitos de homens e mulheres no mundo inteiro. Um século atrás, 90% dos seres humanos estavam abaixo da linha de pobreza extrema para padrões atuais (renda de menos de US$1,9 por dia). Hoje, essa proporção é de 10%, segundo pesquisa recente do Banco Mundial.

Houve uma melhoria generalizada na qualidade de vida e na quantidade de anos vividos no mundo inteiro e não apenas nos países mais ricos. Os principais fatores são institucionais, como o Estado de Direito, a valorização da iniciativa dos indivíduos na relação de trocas e na inovação, o acesso à informação, o direito de expressão, o acesso e o direito à propriedade, a solidez das instituições.

Uma comparação entre fotos de satélite noturnas da Coréia do Sul e da Coréia do Norte mostra que a questão da prosperidade econômica não é cultural, pois se trata de países com culturas originalmente idênticas. A Coréia do Sul é bem mais iluminada do que sua vizinha do norte, o que indica um grau de prosperidade significativamente maior de sua população. A diferença está no modo pelo qual as duas sociedades e economias se organizaram entre 1950 – quando a península da Coréia foi dividida em dois – e os dias de hoje. A Coréia do Sul tem uma economia dezenove vezes maior do que sua vizinha do norte pela presença dos fatores institucionais apontados acima. E esses fatores têm tudo a ver com democracia, entendida segundo a famosa definição do ex-presidente americano Abraham Lincoln – “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Quando isso se traduz em expressão da vontade popular pelo voto livre e igual para todos, por decisões da maioria, por limitação de mandatos e eleições periódicas, por segurança jurídica e liberdades de expressão e trocas, temos os ingredientes principais que fazem a diferença da prosperidade econômica, da justiça e da paz.

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É claro que nem sempre as decisões da maioria são as melhores, pois esta pode estar errada e uma democracia significa também respeitar os direitos das minorias. Isso quer dizer que a democracia, como tudo que é humano, tem seus defeitos: sem contar possíveis distorções nos sistemas de representação política, o cidadão comum, a quem é dado o poder de decisão, não tem conhecimento especializado. Em outras palavras, segundo a famosa frase de Winston Churchill, “a democracia é o pior de todos os regimes”. Na mesma frase, porém, este político britânico emendava: “à exceção de todos os outros”. Ou seja, no momento atual, ainda não se tem algo melhor para propiciar justiça e paz às sociedades modernas, inclusive porque a democracia dá à sociedade um instrumento para a resolução de possíveis erros do passado: o voto popular livre periódico.

Além disso, há mecanismos institucionais no Estado de Direito que permitem correções de distorções e que são fundamentais para a concretização da justiça e aqui estamos falando especificamente do judiciário, que foi tratado de modo mais detido pelo segundo convidado da noite, o Dr. Néviton Guedes.

Após a exposição de caráter mais geral da Profa. Flávia, o Dr. Néviton se propôs a falar do caso brasileiro mais especificamente. Segundo ele, o poder que o judiciário tem hoje no Brasil é algo inédito, não apenas em sua própria história, mas em comparação com outros países no mundo hoje. Embora pareça estranho que um desembargador federal seja crítico em relação a esse estado de coisas, há boas razões para não ver isso com bons olhos.

Um juiz deveria ajudar a solucionar problemas ou conflitos sociais com base no Direito tal como constituído pela sociedade da qual ele faz parte. Cabe a ele superar a tentação de usar seus próprios critérios ao invés das leis democraticamente estabelecidas. Em outras palavras, é muito comum no trabalho do juiz a tentação de fazer a “justiça do caso concreto”, pela qual o magistrado aplica “seu próprio direito”.

A tentação existe não apenas por algum elemento subjetivo do juiz apenas, como algum tipo de vaidade somente, mas também porque há certa demanda social por essa “justiça do caso concreto”, por se deixar de aplicar o Direito de modo impessoal e institucional. O problema é que, nesse momento, a democracia falece. Ao tornar esse tipo de “direito personalizado” até um ato heroico, a mídia e a opinião pública politizam a justiça ou judicializam a política e com isso se tem, na verdade, a desestruturação da justiça, a perda da segurança e o enfraquecimento das instituições, que são a base da democracia.

Por outro lado, temos o problema de que o judiciário eleitoral brasileiro pode subverter em grande medida o resultado de eleições democráticas livres. Apesar de muito elogiada por muita gente, inclusive no meio eclesial, a chamada “Lei da Ficha Limpa”, por exemplo, tirou poder do voto popular e deu a um juiz para decidir que candidato deve ou não ter o poder de representação parlamentar ou de governo. O problema é que na própria definição de democracia está a ideia de que cabe ao cidadão tomar decisões políticas. O resultado é que em grande medida, as eleições brasileiras têm sido resolvidas não pelos eleitores, mas por um grupo restrito de juízes. E ao tomar decisões políticas, o juiz é um cidadão comum, ou seja, ele vai observar e decidir sobre quem pode ou não ser candidato a partir de uma perspectiva limitada. Em outras palavras, a Lei da Ficha Limpa é sinal de uma enorme desconfiança acerca da capacidade do cidadão fazer suas escolhas políticas.

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O resultado disso é que o Brasil tem hoje um número recorde de cidadãos inelegíveis, em grande medida porque as leis que constrangem a ação dos gestores públicos brasileiros atualmente são tão restritivas que é quase impossível terminar um mandato no Brasil hoje sem ter as contas reprovadas ou um processo por conta da Lei de Improbidade. A consequência é que há cada vez menos escolhas disponíveis para os eleitores e o resultado é que, ao contrário do que se propunha a mencionada Lei, vão eleitos políticos cada vez piores. Não custa lembrar que a atual legislatura do Congresso Nacional é a primeira inteiramente eleita na vigência da Lei da Ficha Limpa.

O que se tem com essa tutoria do judiciário em relação à democracia no Brasil é uma diminuição da responsabilidade do cidadão, inclusive porque este cada vez mais acredita que um erro seu vai poder ser corrigido pelo juiz em algum momento e não por ele mesmo na próxima eleição.

Após as exposições, como de costume, tivemos as falas de algumas pessoas do público presente, que no total era formado por cerca de sessenta pessoas.

Além dos problemas apontados pelos expositores, um dos participantes do público observou que a justiça brasileira é lenta e pouco acessível e que isso é um enorme problema em uma democracia. Por outro lado, quem controla os juízes? Ou estamos vivendo um autoritarismo do judiciário?

Segundo outro participante, os juízes no Brasil às vezes parecem prontos para ser candidatos. Por outro lado, parece importante também a questão da formação dos magistrados, será suficiente o tipo de estudo que eles fazem hoje no Brasil para assumir as responsabilidades que assumem?

Outro participante notou que o notório caso da Lava Jato é mais um exemplo de judicialização da política em vários aspectos. Embora seja louvável que se ataque a corrupção no Brasil, preocupam os indícios de dois pesos e duas medidas nas avaliações de doação de campanha para o partido A ou para o partido B. Estaria havendo falta de imparcialidade e, quem sabe, mais um exemplo de juiz que decide como cidadão político.

Na síntese final, a Profa. Flávia lembrou para o fato de que momentos de crise são oportunidades para tentarmos novos rumos e que o que temos no Brasil hoje pode ser visto dessa maneira também. Um debate como este é muito importante para termos clareza dos problemas e das possíveis soluções. A seu ver, a discussão hoje mostra que, tal como as sociedades prosperam economicamente quando colocam nas mãos do maior número de agentes possíveis o poder de realizarem trocas, é melhor para a política deixar nas mãos dos cidadãos a maior quantidade de poder político possível. É verdade que o cidadão comum não tem o conhecimento especializado para tomar várias decisões, mas é ele quem sofre as consequências dessas decisões e não há ninguém melhor para corrigir suas eventuais distorções. Além disso, a Constituição Federal de 1988 tem vários méritos, mas ela é uma colcha de retalhos com várias incoerências. Isso gera insegurança e tem consequências ruins para todos. É algo que devemos pensar para aperfeiçoarmos nossa democracia, que é uma tarefa contínua.

Segundo o Dr. Néviton, após a CF de 1988, houve uma explosão de litigiosidade, com um crescimento enorme de processos no judiciário. Isso foi saudado por muitos como um sinal da redemocratização. O problema é que além de tornar o judiciário lento e de difícil acesso, o normal em uma sociedade sadia é as pessoas cumprirem suas obrigações espontaneamente e não sob vara. Isso quer dizer que o aumento exponencial do papel do judiciário no Brasil hoje é sinal de uma sociedade doente, que precisa de tratamento e o tratamento é o aperfeiçoamento da democracia. Esta assenta seu poder não na decisão de um grupo de iluminados, por mais bem formados que sejam, mas do povo, do cidadão comum e mediano, por mais temerário que isso possa parecer. Os juízes devem ter a humildade de ver que as decisões econômicas devem ser tomadas por critérios econômicos e as decisões políticas, por critérios políticos.

Falando pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, seu Presidente, José Márcio de Moura, lembrou o fato de que é um dos doze filhos de um juiz de direito do interior de Minas. Nas brigas entre os irmãos, estes recorriam ao pai para resolver quem estava certo e este, sabiamente, devolvia a eles o dever de entrarem em acordo pelo diálogo e o respeito. A lição parece caber hoje também: a sociedade brasileira só amadurecerá quando entender que não cabe aos outros resolverem suas questões sempre, mas a ela própria por meio do entendimento e da disposição ao acordo.

Por fim, o Pe. Ernanne convidou todos para entoar o cântico da oração de São Francisco, que nos conclama a sermos instrumentos da paz, do amor e do perdão.

Por Comissão Justiça e Paz

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