A Comissão Justiça e Paz de Brasília realizou, neste 03 de julho, no Auditório Dom José Freire Falcão, mais uma edição das “Conversas de Justiça e Paz” do ciclo de 2017. O tema deste encontro foi “Brasil: horizontes éticos e políticos para superar a crise”.
A mesa, moderada pelo membro da CJP Mauro Noleto, foi aberta com a exortação do Cardeal Dom Sérgio da Rocha, Arcebispo de Brasília e Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Em sua exortação, Dom Sérgio enfatizou que, para além da crise política e econômica, vivemos também uma crise de valores, que nos leva a refletir sobre qual projeto de país e de nação queremos construir: “o momento de crise econômica e política tem se revelado como um momento de crise ética e por isso precisamos aprofundar ainda mais a reflexão sobre os horizontes de superação dessa crise”. Antes de passar a palavra aos expositores, a quem agradeceu a disponibilidade de colaborar com a reflexão proposta, D. Sérgio concluiu sua saudação com a certeza de que aquele encontro representava um “sinal de esperança” de que poderemos, sim, superar essa crise pelo diálogo e pela reafirmação dos compromissos éticos sem os quais as eventuais saídas políticas ou econômicas que se apresentem são insustentáveis.
Os convidados para discorrer sobre o tema desta Conversa foram: MARCELLO LAVENÈRE, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, professor universitário, integrante de organizações não governamentais, conferencista requisitado e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, órgão vinculado à CNBB; e GUILHERME DELGADO, doutor em economia pela Unicamp, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, cofundador da Comissão Justiça e Paz do Distrito Federal e assessor da CNBB para questões relacionadas à política social e política agrária.
O primeiro a expor foi o professor Guilherme Delgado, que advertiu logo de início que sua intervenção se daria com o enfoque da economia política. E lembrou que, por se tratar de um tema complexo, seria preciso fazer algumas considerações preliminares. Para Delgado, tratar a crise pelo prisma ético é fundamental para que evitemos cair ou ficar restritos a tecnicalidades. E, mais, para não supor que a sociedade é regida por uma “ética compulsória do egoísmo comportamental” (utilitarista). Devemos, segundo ele, avançar para além desse “consenso” utilitarista das análises econômicas, mas também devemos procurar evitar os “achismos”. Delgado entende que não podemos fundamentar nossas próprias análises e interpretações da crise apenas em convicções, desprezando os fatos e os dados da observação científica. E, finalmente, precisamos ter em mente que a crise é histórica e concreta e que não admite, por isso, uma visão meramente conceitual.
Em seguida, Delgado passou a discorrer sobre a crise, a partir da análise de três fatores da economia política: a terra, o trabalho e as finanças. Procurou demonstrar que desde 2015 estamos vivendo um processo de ruptura ou pelo menos de mitigação das relações de trabalho, fundiárias e financeiras no país. Um processo de desregulação ou “auto regulação” comandado pelos agentes de mercado.
No caso das relações trabalhistas, “investe-se em reformas que desestruturam a intervenção do Estado voltada para assegurar o equilíbrio entre capital e trabalho”, uma intervenção que busca compensar a desigualdade material que está na matriz dessas relações em um sistema capitalista. Exemplos claros desse movimento, para Delgado, são as propostas que dão prevalência ao “acordado sobre o legislado” e as que promovem o enfraquecimento da proteção social de situações incapacitantes para o trabalho.
No aspecto fundiário, Delgado enfatizou que a Constituição de 1988 criou quatro regimes jurídicos na tentativa de “desmercadorizar” a terra no Brasil, a saber: o regime para a produção, em que a terra deve cumprir uma função social e ambiental, impedindo pois a livre disposição de seus proprietários; o regime de destinação ética, que deve atender os direitos originários de povos indígenas e quilombolas; o regime de preservação e conservação ambiental (parques, reservas etc); e o regime de terras devolutas (marinha, fronteiras…). No entanto, observa que há movimentos claros na atual conjuntura para transformar novamente a terra em simples mercadoria no Brasil, seguindo a lógica utilitarista, e, mais grave, com tendência de internacionalização desse mercado de terras, provocando riscos preocupantes para a própria soberania nacional.
Quanto às relações financeiras, o professor Delgado advertiu enfaticamente para os riscos e da desregulamentação que vem sendo feita de modo a por fora do alcance da deliberação democrática o gasto público de ordem financeira, o custo da dívida pública. Lembrou que a assim chamada “Pec do Teto” (promulgada como Emenda Constitucional nº 95) congela os gastos públicos primários, afetando profundamente a sustentabilidade de toda a ordem social prevista na Constituição, mas deixa de fora dessa limitação os gastos financeiros, o que para ele, consagra uma espécie de “sacralidade do capital financeiro”, que submeterá, nos termos da norma aprovada pelo Congresso, toda a sociedade por 20 anos.
A partir da análise dessas categorias, concluiu que a crise brasileira – que se caracteriza do ponto de vista da economia política por tais processos “malignos” de desregulamentação e desproteção social sem paralelo em nossa história – revela uma “idolatria do capital” como entidade substitutiva de toda a ética social e suas exigências de solidariedade e de justiça distributiva. Segundo Delgado, “os horizontes que precisamos recuperar têm tudo a ver com realizar a leitura ético-teológica da História”, pois “a história da salvação se faz na vida social concreta, não apenas na relação individual eu-Deus”. Para ele, nós os cristãos precisamos realizar nossa espiritualidade nas relações sociais, com envolvimento na política, tomando posição para “denunciar a malignidade presente nessa situação” (da crise pela qual passamos).
Em seguida, a palavra foi passada ao segundo expositor da noite, o professor Marcello Lavenère. Após saudar os presentes, Lavenere lembrou as palavras do Papa Francisco sobre o momento histórico que vivemos, em que há “tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade”. Um momento de crise que reclama mudanças profundas nas estruturas de nossa sociedade.
Lavenère reconhece primeiramente que a crise brasileira atual é de natureza política e institucional, e está afetando todos os poderes da República, com a novidade da inserção do Judiciário, “infelizmente, um protagonista destacado dessa crise”. Mas também se trata, segundo ele, de uma crise ética que ultrapassa as questões comportamentais dos agentes políticos e “vai na raiz da nossa visão de mundo, que subverte valores históricos que nós temos, que vai atingir os fundamentos da nossa convivência, afetando os estamentos mais desamparados, mais vulneráveis do nosso país. ”
Lavenere então pergunta: “por que chegamos nesse ponto? ” Lembra que o Brasil parecia caminhar para superar seus problemas históricos, com uma democracia aparentemente estável e com medidas econômicas mais inclusivas. No entanto, entende que fomos afetados por uma crise mundial das democracias representativas, de que foram exemplos os movimentos da chamada “primavera árabe”, no oriente médio e norte da África, e o “ocupa wall street”, nos Estados Unidos, entre outros. Assim, a democracia que imaginávamos sólida a partir do voto, conclui Lavenere, não tem sido mais suficiente para legitimar os governos, porque, apesar da realização de eleições livres, o que tem ocorrido com frequência é que os governos e os agentes políticos se distanciam do povo e adotam prioridades vinculadas a exigências puramente econômicas e financeiras.
Por outro lado, para Lavenère, precisamos lutar para superar essa crise sem cair no “niilismo” que, segundo ele, vem sendo alimentado pela mídia, interessada em aprofundar a perda de legitimidade de todo o sistema político-democrático, já amplamente desmoralizado pelos escândalos de corrupção transformados em espetáculo.
Para Marcelo Lavenere estamos diante de um dilema: ou sucumbimos à crise ou nos engajamos “com paixão” na luta em busca de sua superação, conforme os ensinamentos do Papa Francisco. Precisamos, portanto, de outras reformas. Uma reforma política democrática que elimine a influência do poder econômico nas eleições e aproxime os políticos dos reais anseios e direitos do povo; mas também uma reforma do Judiciário e do Ministério Público, para que não se fundem apenas em uma “meritocracia estéril” sem vocação para julgar; além de uma reforma tributária que promova mais equilíbrio e justiça fiscal no país.
Concluiu, citando trechos de um belo e provocativo poema (Ladainha para um menino de rua, de Miguel Palomino) sobre os meninos e meninas de rua, para chamar a atenção para a necessidade desse engajamento, lembrando que todos nós temos muito a ver com “tudo isso”, isto é, que superar a crise não é um problema alheio, algo confinado aos ambientes institucionais e do mundo político, mas uma questão de cidadania e participação ativa de todos.
Após as exposições, teve lugar o rico e já costumeiro debate com os integrantes do auditório, que reforçaram sobremaneira os pontos trazidos à reflexão pelos expositores e acrescentaram mais dados e opiniões sobre os horizontes éticos e políticos que devemos buscar para a superação desta grave crise pela qual passamos.
A sessão foi encerrada com as palavras do Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília José Márcio de Moura, que agradeceu os convidados e todos os presentes e destacou a participação do Cardeal D. Sergio da Rocha como sinal da importância do debate promovido pela CJP-DF.
Por Comissão Justiça e Paz
Assista a Conversa na íntegra: