Para José Geraldo de Sousa Junior, direitos são resultado de lutas sociais pelo reconhecimento no percurso emancipatório. Imprensa é “cão de guarda da democracia”, e apesar de necessitar ser fiscalizada, não pode perder seu princípio fundamental de liberdade
Por: João Vitor dos Santos | Edição: Márcia Junges
“Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação”, pontua José Geraldo de Sousa Junior em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “os meios de comunicação, principalmente os abertos — rádio e TV — mas também os jornais, são indispensáveis para informar e contribuir para a formação de opinião. Por isso que, mesmo em sociedades de livre iniciativa, nas quais todo valor acaba sendo o de troca, eles são fundamentais e até os que acabam se tornando alvos selecionados de sua atenção, nem sempre isenta, reconhecem a sua importância.”
O jurista destaca que é preciso contrapor o “princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantêm-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa”. José Geraldo pondera, ainda, que a expressão jurídica das “lutas por dignidade se realizam não como dons, artefatos estocáveis em prateleiras de algum almoxarifado legislativo, mas como invenção, como cidadania expandida.”
José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto O Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No Brasil, os sujeitos sociais têm protagonismo no Poder Judiciário? Por quê?
José Geraldo de Sousa Junior – Minha resposta imediata é sim. Mas é um sim contextualizado. De um lado, pelo aspecto formal, isto é, aquele que deriva da institucionalidade constituída, o protagonismo está inscrito no conjunto de procedimentos abertos a esses sujeitos, para acesso a uma titularidade judicante muito ampliada com o sentido participativo que a Constituição Federal de 1988 proporcionou. Chamada de cidadã porque configurada num modelo de exercício direto da democracia, os protagonismos daí decorrentes abriram no sistema político, no Executivo e no Legislativo, mas também no Judiciário alternativas de participação ou inéditas ou pouco exploradas.
Refiro-me, no caso do Judiciário, à ampliação do elenco de ações populares, dos instrumentos de salvaguarda de direitos (petição, habeas data, acesso à informação), à expansão da titularidade para as ações declaratórias de constitucionalidade e de cumprimento de preceito constitucional, o reconhecimento do amicus curiae, especialmente as audiências públicas dando espaço e voz para a manifestação de segmentos sociais aptos a opinar sobre temas candentes e de permitir a contribuição de expertise necessária ao melhor conhecimento de temas difíceis que escapam ao juízo limitado dos próprios julgadores. Isso foi exercitado em situações complexas, bastando lembrar os julgamentos, no Supremo Tribunal Federal, das ações relativas à antecipação de parto em casos de anencefalia, à demarcação das terras indígenas (Raposa Serra do Sol ) e a ações afirmativas para a admissão de negros e negras nas universidades brasileiras.
A resposta a esta pergunta leva, por outro lado, para uma consideração de ordem material, que situa o protagonismo dos sujeitos sociais (não considero aqui a questão do protagonismo dos operadores, no campo do chamado ativismo judicial, tratado noutro momento) em outra dimensão, vale dizer, a que insere o tema Justiça na agenda das disputas que se dão no território real e simbólico da Política. Tratei desse tema em muitas aproximações, mas de forma muito definida no trabalho de pesquisa lançado pela então Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. A propósito, conferir em http://bit.ly/2dF5Tzb, os resultados da pesquisa realizada, cujo ponto de partida leva em conta o fato de que “a consolidação de um regime democrático minimamente estável, alcançado com relativo atraso no Brasil, requer uma atualização rápida e decisiva de todas as formas institucionais e práticas sociais pelas quais se dá o exercício legítimo do poder. Os processos de gestão dos conflitos pela linguagem do direito, que se desenvolvem no campo aqui designado pela expressão mais ampla de Justiça, evidentemente não escapam dessa exigência. Ao contrário, a atualização democrática da Justiça parece envolver tarefas ainda mais problemáticas e desafiadoras que em outras áreas do governo e da sociedade”.
IHU On-Line – Em que medida se pode afirmar que a Constituição, enquanto construção de direitos no Brasil, é uma obra inacabada?
José Geraldo de Sousa Junior – A filósofa Marilena Chaui , em prefácio ao livro de Claude Lefort , A Invenção Democrática, definiu a democracia como invenção por ser a possibilidade de criação permanente de direitos. Ou seja, conferiu à Constituição como projeto de sociedade, esse caráter de incompletude que reconhece no protagonismo social a sua condição de contínua atualização. Com efeito, tomando a Constituição brasileira em vigor (ainda em vigor), vemos no seu artigo 5º., após o elenco de direitos nele descritos, o reconhecimento dessa incompletude logo no parágrafo (2º.), quando o Constituinte anota que o elenco não exclui outros (direitos) “decorrentes do regime (democrático) e dos princípios por ela adotados” (os direitos humanos, por exemplo).
É claro que reduzida ao formato de um documento jurídico, a Constituição fica engolfada num intenso processo de despolitização inversamente proporcional à sua captura técnica e ideológica pelas instituições do sistema de justiça e pelos profissionais do Direito. Desse modo, como testamento de um ente não mais vivente, uma abstração idealizada como a soberania popular, a Constituição se descola do cotidiano social, alienando completamente da sociedade a função — ou seja, o direito em formato de poder-dever — de atribuir ou disputar o significado do texto constitucional. Assim, como testamento da soberania popular a Constituição passa à condição de refém de um corpo de especialistas técnicos vinculados à institucionalidade estatal, transformando a função judicial em poder-dever exclusivo e soberano de atribuir sentidos e definir o significado político do Direito.
Por isso tenho sustentado, no debate com os companheiros e companheiras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), a abertura para um debate construtivo a partir de um Constitucionalismo Achado na Rua (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015), uma leitura em sentido contrário, enfim, que aliada à Teoria Constitucional, percorra outro caminho, o caminho do retorno à sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade, como define Roberto Lyra Filho (O que é Direito. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982).
Algo que corresponda à observação que me fez o Professor J. J. Gomes Canotilho , numa entrevista que dele obtive (Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, n. 24, junho, 2008), a propósito da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo e que levam a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito e do qual emergem as principais ‘posições interpretativas da Constituição’. Para ele, no que estou de acordo, a ‘luta constituinte’ era (e é) uma luta por posições constituintes e a lógica do ‘pluralismo de intérpretes’ não raro esconde que essa luta continua depois de aprovada a Constituição. Portanto, o elemento central dessa questão reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o princípio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais. Para ele não se pode esquecer que “Do outro lado da rua, há o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.
IHU On-Line – Como o senhor compreende a ideia de judicialização da política? Em que medida a judicialização tende a reduzir a democracia ao Estado de Direito? E que avanços ela pode inspirar?
José Geraldo de Sousa Junior – Na abertura do livro Ética, Justiça e Direito: reflexões sobre a reforma do Judiciário (Editora Vozes,1996), que organizei juntamente com o Padre José Ernanne Pinheiro , Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio , livro, por sua vez, fruto de seminário com o mesmo título organizado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a propósito das iniciativas legislativas para a reforma da Justiça no Brasil, é dito com ênfase que “da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes, de outro; têm-se acentuado a necessidade de compreender novas condições sociais como a emergência dos movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, com a valorização de um efetivo pluralismo jurídico” (p 9-10).
Em decorrência, ali foi dito ainda, aliás em texto de minha autoria — Novas Sociabilidades, Novos Conflitos, Novos Direitos —, que “num contexto de profunda mudança na sociedade brasileira, também os operadores jurídicos vivenciam perplexidades que têm gerado impasses que recaem na atuação desses mesmos operadores, e nos defrontamos com um quadro de perda de referência e até de perda de confiança no papel das instituições e no papel dos instrumentos que foram constituídos no plano de formação da nossa sociedade. No que diz respeito à atuação da magistratura e a sua visibilidade no plano social, esta perda de confiança e de referência tem gerado algumas ambiguidades que vão se localizar, especialmente no que diz respeito aos operadores, na convicção sobre a sua formação jurídica de um lado, e na convicção sobre o seu papel social, de outro”.
Desse fenômeno resulta o que tem sido chamado ativismo judicial e judicialização da política, juízas e juízes assumem, cada vez mais, função pública e social, e nela incorporam a dimensão orgânica que institucionaliza a sua judicatura. Assim, da alternatividade que move o juiz diligente em busca da refuncionalização de sua judicatura e de reorientação da cultura jurídica de sua formação, ressalta o dilema a que alude Márcio de Oliveira Puggina , magistrado engajado no movimento “juízes para um direito alternativo”, para os quais, ele disse naquele Seminário: “Certo de que a lei justa é responsabilidade ética do legislador […] a sentença justa ou injusta é inalienável responsabilidade ética do juiz”.
A alternatividade emerge, assim, lembra Urbano Ruiz , fundador e primeiro presidente da Associação Juízes para a Democracia – AJD, também presente no Seminário já referido, como consequência da exigência de liberdade que se inscreve no ato de julgar, seguindo imperativo do artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e ela decorre, certamente, de uma tendência dos tempos correntes, qual seja, o deslocamento do juiz ao papel de mediador político. O juiz, nesse contexto, disse Ruiz durante o Seminário, deveria assumir outros papéis, como o de mediador político, porque a ação, processualmente considerada, passa a ser encarada como instrumento de participação, de atuação política, mesmo porque os cidadãos, organizados, percebem que individualmente são fracos mas, aglutinados, conseguem, através do processo, espaços na mídia, de modo a pelo menos chamar atenção para os gritantes problemas que enfrentam no dia a dia, sem que possam ser acudidos. A política, na verdade, migra dos foros até então conhecidos, dos partidos e do Parlamento para os movimentos organizados (sem-teto, sem-terra, comunidades de base, mutuários do SFH, de mensalidade escolar, de defesa do consumidor etc.). É crescente, portanto, a politização dos conflitos, mesmo porque deixaram de ser intersubjetivos individuais, para assumirem feição coletiva”.
Certamente trato aqui do fenômeno da judicialização e do ativismo em seu sentido criativo, aquele segundo o qual em sua complexização o Estado alcança uma base para refuncionalizar sua operatividade promovendo deslocamentos razoáveis, entre os quais, o do ato de julgar tendo como núcleo realizador não mais a norma (unidade de análise do sistema jurídico inscrita no processo legislativo), mas a concretude da sociabilidade dinâmica, cuja unidade de análise é o próprio conflito submetido ao juiz para mediação pretensamente solucionadora. Claro que estou falando, nesse passo, menos de um juiz voluntarista e carregado de entusiasmo, Hércules ou Hermes, mas daquela estirpe de íntegros juízes de que falava Anatole France , que sabe fazer a jurisprudência andar pelas ruas. Uma estirpe de juízes — Victor Nunes Leal , Evandro Lins e Silva , entre eles — que sabem exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, a justiça não deve encontrar o empecilho da lei, nem torná-la uma promessa vazia preenchida pelos seus critérios valorativos, mas de modo a levar a jurisprudência a andar pelas ruas porque, lembrava Victor Nunes Leal, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.
Assim, pode-se falar de judicialização em sentido forte, quando se trate dessa capacidade construtiva, prevista na hermenêutica de integração, que sabe combinar regras e princípios, que possibilita ao juiz e ao jurista, lembro mais uma vez o professor Canotilho (Teoria da Constituição e do Direito Constitucional), lançar o olhar vigilante sobre as exigências do justo e, orientados por teorias de sociedade e teorias de justiça, abrir-se a outros modos de consideração do Direito, inscrito nas práticas sociais e em O Direito Achado na Rua, portanto, teórica e politicamente assentadas em hipóteses críticas que alavancam as possibilidades proporcionadas pela leitura sociológica do pluralismo jurídico. Mas, há que se prevenir das injunções de uma judicialização em sentido fraco, vulgarizada pelas pré-compreensões de operadores jurídicos mal formados, imersos nas reduções ideológicas de uma cultura jurídica limitada pelo paradigma das ideologias rasteiramente difundidas por um ensino jurídico de reprodução, acrítico, rendido a argumentos de autoridade, a vieses paradigmáticos esgotados, rebaixando, por sua vez, todo o potencial realizador da atuação profissional incapaz de se materializar em verdadeira função social (a advocacia e a magistratura como dimensões essenciais da Justiça, CF artigos 127, 133), para além dos lugares batidos das expectativas corporativas ou de prestígio e privilégio de classe.
IHU On-Line – Como a perspectiva da judicialização da política se imprime nos casos do Mensalão e da Operação Lava Jato ?
José Geraldo de Sousa Junior – Penso que na dupla consideração a que acima me referi. De uma parte, há o limite determinado pela percepção reduzida da função social que os operadores de Direito – advogados, membros do Ministério Público, magistrados – são chamados a exercer numa sociedade democrática realizada pela mediação de um verdadeiro estado de Direito. Com meu colega Antonio Escrivão Filho tratei dessa questão em livro recentemente publicado intitulado Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016). Trata-se de considerar as alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas dessas múltiplas crises que têm apontado para a necessidade de reconhecer novos paradigmas sociais e epistemológicos que instauram e reclamam reconhecimento. No plano epistemológico, por exemplo, a redução acrítica do jurídico ao legal ou ao jurisprudencial positivados, revelam o obstáculo da cultura jurídica em que são formados os operadores, levando ao desalento expresso pelos teóricos críticos do positivismo, que denunciam de longa data os práticos da cabotagem no direito, circum-navegando ao redor dos códigos (Orlando Gomes, A Crise do Direito, 1958), o ensino errado do Direito, pela inadequada apreensão de seu objeto de conhecimento, gerando os equívocos da pedagogia (Roberto Lyra Filho, O Direito que se ensina errado, 1982) e, mais recentemente, a constatação feita pelo jurista brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade , por duas vezes presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para quem o principal obstáculo à internalização no sistema nacional de Direito, dos enunciados de direitos humanos inscritos nos tratados e convenções sobre o tema radica no positivismo que constitui a base do conhecimento e da prática jurídica dos magistrados brasileiros.
A esses obstáculos que se inscrevem no conhecimento e no ensino jurídico e empobrecem a prática dos operadores, muitas vezes contidos de boa-fé num campo de concentração epistemológico, se agrega uma outra área de contenção pelo jurídico, neste caso, como posicionamento ideológico e visão de mundo e de sociedade, do movimento emancipatório e existencial e histórico de reivindicar reconhecimento das expectativas sociais por dignidade e por cidadania. Se lá atrás sustentamos que os direitos não são quantidades, são relações, são a resultante das lutas sociais por reconhecimento no percurso emancipatório, que nos constitui sempre mais plenamente humanos, a expressão jurídica dessas lutas por dignidade se realiza não como dons, artefatos estocáveis em prateleiras de algum almoxarifado legislativo, mas como invenção, como cidadania expandida.
Direito inquisitorial
É dramático constatar as objeções funcionais e conceituais tradutoras desse processo, especialmente no campo de aplicação formal do Direito, com a criminalização das reivindicações sociais por novos direitos, a seletividade semântica do discurso jurídico (invadir x ocupar) e a defesa intransigente e leal ao privilégio/favor na contraposição entre o egoísmo (propriedade privada) e a distribuição solidária (função social da terra e do território).
Em nome dessa lealdade, constituída na cultura do colonialismo ainda tão fortemente arraigado em nossa formação econômica, social e cultural (patrimonialismo, racismo, patriarcalismo, coronelismo, clientelismo, prebendismo, filhotismo, cunhadismo, nepotismo), tão bem designados nos estudos de Darcy Ribeiro (O Povo Brasileiro), Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), as características hierárquicas, segregacionistas, correcionais, rotuladoras, estigmatizantes, expressas numa variação de aplicações de estereótipos, tal como se assiste no elenco de práticas presentes no modelo inquisitorial do aparato disciplinar do Direito. É aqui o punitivismo encarcerador impermeável aos avanços civilizatórios do sistema de direito criminal, tendente ao abolicionismo e a alternatividade penais, sob o pressuposto, desde Beccaria , de que a história da pena de prisão é a história de sua constante abolição e de que o suplício em si não realiza justiça, apenas afirma poder, fecha-se na ignorância das múltiplas causas do fenômeno da delinquência para se afirmar apenas em propostas de penas aflitivas, de agravamento de penas e de redução das conquistas civilizatórias do campo, a presunção de inocência, o encurtamento do duplo grau de jurisdição, a restrição à liberdade com a vulgarização das prisões preventivas e cautelares, a adoção de modelos indolentes de tipificação com a adoção das formas torpes de delação erigidas à categoria de premiação, e, para culminar, tal como se constatou e se vem constatando, a leniência às salvaguardas constitucionais de aceitação do ilegal para a produção de provas e da presunção em lugar da facticidade probante. Tudo isso ornado com a mobilização propagandística que ilude a justa expectativa social de por cobro à criminalidade, à impunidade, com medidas entusiasticamente oferecidas para efeito placebo da moralidade subtraída.
Ainda não se apurou devidamente — há inclusive interpelação de instâncias supranacionais — a exacerbação instrucional com violação de garantias e de direitos constitucionais e supralegais — promovidos pela condução espetacularizada e midiática dos procedimentos por isso mesmo literariamente designados: Mensalão, Lava Jato e outras modalidades de realizar o que a criminologia, não só a crítica, mas também a liberal (Reação Social), codinomina de Processo de Criminalização.
IHU On-Line – No Brasil de hoje, o Judiciário tende a ser visto como poder moderador, desde os aspectos políticos aos sociais? Em que medida isso ocorre pela inércia de Executivo e Legislativo? Quais os riscos de tomar o Judiciário como superpoder?
José Geraldo de Sousa Junior – A partir da experiência do protagonismo social, por seus movimentos, fazendo avançar a democracia e reinstitucionalizando os processos políticos, relegitimando-os, luta pela anistia, constituinte, memória e verdade, deu-se um sentido afluente à cidadania e à consciência de se constituir sujeito da própria história. Esse fenômeno manifestou-se também como uma expansão política da justiça e de judicialização dos direitos, em algum sentido, uma forma de transferência de competências políticas do Executivo e Legislativo para o Judiciário, por impulso de mobilizações sociais. Como tratei, juntamente com meu colega Escrivão Filho, no livro mencionado, ainda que este cenário de expansão política e judicialização não se resuma à transferência de competências em sentido estrito, é fato que esta transferência se observa, seja em razão da incapacidade dos outros Poderes efetivar matérias, políticas ou decisões de sua competência, seja como expressão de inconformismo político em relação à decisão tomada por estes Poderes, vide as centenas de casos de ações judiciais que visam reverter a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e assentamentos da reforma agrária realizados na medida de complexas decisões políticas e ao cabo de extensos procedimentos administrativos onde às partes é garantido, pela própria Constituição (art. 5º, LV), o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Ocorre, então, que transferindo-se a competência, há que se transferir também os instrumentos correspondentes para uma adequada atuação sobre o problema, não apenas preservando, mas inovando e aprofundando as garantias de autonomia e independência judicial com moldes radicalmente democráticos. E há que se projetar de igual modo, não só o acesso à justiça, mas a transformação da justiça a que se tem acesso.
IHU On-Line – Como analisa a relação tão estreita entre a mídia e os operadores do Direito na Operação Lava Jato? O que os vazamentos da Operação revelam acerca das relações políticas no âmbito do Judiciário e Ministério Público?
José Geraldo de Sousa Junior – Os meios de comunicação, principalmente os abertos — rádio e TV — mas também os jornais, são indispensáveis para informar e contribuir para a formação de opinião. Por isso que, mesmo em sociedades de livre iniciativa, nas quais todo valor acaba sendo o de troca, eles são fundamentais e até os que acabam se tornando alvos selecionados de sua atenção, nem sempre isenta, reconhecem a sua importância. Marx, que viveu às turras com os jornais de sua época, para lembrar os processos que disputou com a Gazeta Renana, nem por isso deixava de atribuir à imprensa o papel de “cão de guarda da democracia”.
Daí o princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantém-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa.
Certamente a contrapartida para essa valorização simbólica é não descuidar, que mesmo propriedade, os meios de comunicação se constituem uma esfera pública e têm que realizar os valores democráticos que asseguram o direito à livre informação.
Não é o que assistimos no Brasil quando a opinião fica adstrita a uma linha editorial que confere aos meios de comunicação o aparato político de ideologização da opinião única, divulgada como se fosse proselitismo de um partido político. E, principalmente quando se associa ou se articula com estratégias de rotulação estigmatizante que se prestam a forjar uma orientação criminalizadora. É esse o fenômeno que estamos presenciando no Brasil hoje, com os grandes meios mobilizando a sociedade para assumir pontos de vista sobre os problemas sociais, espetacularizando de forma prestidigitadora, manipulando mesmo, a opinião, para alcançar objetivos que servem as suas alianças políticas e econômicas (em países mais nitidamente constituídos no modelo capitalista, o que acontece no Brasil é inaceitável, e a divulgação espetacularizada de procedimentos de ofício como denúncias com o ilusionismo de apresentações valendo-se de efeitos especiais têm sido base para a anulação judicial dos processos levados a cabo com esses artifícios). E é desastroso quando esse processo agrega agentes públicos que se valem desse espetáculo ilusório para calçar seus objetivos confessáveis ou inconfessáveis de vigilantismo messiânico. São aqui os vazamentos seletivos (conferindo perfis criminais sob o manto da informação jornalística), ali a glamourização do arbítrio (a justificação eficiente da colheita de provas ilegais e abusivas, a tolerância com a banalização das prisões cautelares e preventivas), ali a introdução de instrumentalidade processual na contracorrente do avanço civilizatório (a desqualificação do habeas corpus, da proteção recursal e do duplo grau de jurisdição) e, em suma, para subliminarmente inculcar na mentalidade social a imagem do bode expiatório oferecido em expiação para cumprir função sacrificial, e logo entregar-se às acomodações ao modo de reformas, cujo único intuito, lembra Lampedusa , é conservar.
Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação.
IHU On-Line – Qual a importância de órgãos reguladores do Judiciário e Ministério Público? E como avalia as atuais formas de regulação do Judiciário e Ministério Público hoje?
José Geraldo de Sousa Junior – Este tema já foi objeto de minha consideração anteriormente (Controle Democrático do Judiciário e do Ministério Público, in Ideias para a Cidadania e para a Justiça, Sergio Fabris Editor, 2008). Mantenho o mesmo entendimento de então. Os dois institutos criados pela EC 45/2004, introduzem o conceito de controle da administração da Justiça e representam a mais nítida iniciativa de abrir o Poder Judiciário e o Ministério Público ao controle democrático próprio da cidadania participativa consagrada com a Constituição de 1988.
Entretanto, para meu espanto, embora saudados como um passo importante na direção de uma democratização desse aparato, a criação dos dois Conselhos foi logo repudiada tendo a AMB proposto objeção constitucional sob o fundamento de violação do princípio da separação e da independência dos poderes. Vê-se, assim, a tentação de aprisionar o modelo concebido como projeto participativo, num enquadramento corporativo. No modelo proposto pela EC-45, os Conselhos foram concebidos como órgãos do Poder. As funções de controle por meio deles exercidas apenas alargam a administração do sistema com a participação qualificada de cidadãos e sequer alcançam a dimensão de exterioridade a que conduz o debate político que traça contornos e que deve ser mais ainda aprofundado, como condição de concretização institucional democrática e republicana.
IHU On-Line – No que todo o processo de impeachment e seus desdobramentos, desde a Operação Lava Jato a ações do Ministério Público de São Paulo contra o ex-presidente Lula, até o afastamento do presidente da Câmara Eduardo Cunha , pode impactar na – ou a leitura que se faz da – Constituição de 1988?
José Geraldo de Sousa Junior – Estou entre os que, por diversos modos — atos públicos, petições, manifestos, seminários, entrevistas, publicações —, conferiram ao processo em curso que se revelou por inteiro com o afastamento da presidenta da República a interpretação de que ele configurou um golpe institucional armado contra um projeto de sociedade, uma plataforma política e uma concepção de democracia. Por isso, ele se realiza e é conduzido contra a Constituição que representa esses valores e contra os sujeitos que nela se inscrevem, os trabalhadores, os marginalizados, os excluídos, os subalternos emergentes das lutas decoloniais que estão na base da formação social brasileira e das múltiplas lutas por identidade e reconhecimento. A fidelidade a esse projeto emancipatório coloca como tarefa política no pós-impeachment defender intransigentemente a Constituição.
IHU On-Line – A Constituição de 1988 estabelece o Ministério Público a serviço da cidadania, deixando para trás a ideia de apêndice jurídico do Executivo. Que avanços isso proporciona e que distorções também acaba causando?
José Geraldo de Sousa Junior – O capítulo do Ministério Público na Constituinte foi uma das mais qualificadas construções de todo aquele processo. O relator, deputado Plínio de Arruda Sampaio, ele próprio egresso da corporação soube, a partir de sua visão de sociedade e de mundo, compreender que a mobilização de seus membros, desconfortáveis no lugar de “procuradores do rei” e de “agentes plenipotenciários do poder” se orientava, em sintonia com o social, para se revestirem da investidura de defensores do povo e da cidadania. Assim foi desenhado o modelo do Ministério Público na Constituição. É certo que, assim como não é possível colocar vinho novo em odre velho, o odre novo se desfaz com a fermentação do vinho velho. Muito da velha concepção própria à mentalidade funcional e cultural dos integrantes da Corporação logo migrou para a nova institucionalidade. Notadamente quando se trate de pensar as aberturas cognitivas para a inteligibilidade das transformações desafiadoras da realidade. Elas ainda se apresentam opacas e ininteligíveis para a velha mentalidade mal acondicionada nas novas instituições. Estou pensando o constrangimento do MP e da Magistratura diante dos desenhos novos do social em movimento, no exame das cotas nas universidades, do reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais aos seus modos de vida, de apropriação e de produção, dos indígenas e seus modos de subjetivar o território, das reivindicações camponesas politizando o processo de expansão da Justiça, com a negação à formação das turmas especiais para assentados instaladas nas universidades e a notável dificuldade de fazer a leitura inclusiva das manifestações para a ampliação dos direitos humanos em suas múltiplas dimensões. Uma nota de ilustração para fechar este item.
Aludo à mensagem alvissareira, com esperado reflexo de mudança nas decisões do STF e da magistratura em geral, a partir de um ponto do discurso de posse do ministro Ricardo Lewandovski na presidência do Supremo. Ali, o chefe do Poder Judiciário afirmou ser “preciso, também, que os nossos magistrados tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a observância da jurisprudência dessas cortes”. É alvissareiro porque significa a disposição política para orientar uma virada no campo dos direitos humanos internacionais. Mas é aí que reside o obstáculo cultural que inibe juízes e procuradores chamados a esse exercício de abertura ao jus cogens. Pesquisa conduzida pelas ONGs Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular (GEDIEL, José Antonio P. et al. Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil. Curitiba: FAFCH/Ford Foundation, 2012) dá conta de que “40% dos juízes (entrevistados pela pesquisa) nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA […]”. Não esqueçamos que a formação dos magistrados é a mesma formação dos membros do Ministério Público.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a fala da ministra Cármen Lúcia ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal? É possível afirmar que ela é capaz de inaugurar outro momento do Judiciário brasileiro?
José Geraldo de Sousa Junior – Há que se ter em mente, neste sentido, que o cenário de judicialização dos direitos humanos e de expansão política da justiça reivindicam, e justificam, o deslocamento da agenda política de participação e controle social — historicamente desenvolvida e adequada para a atuação junto aos Poderes Executivo e Legislativo — para o Poder Judiciário, com vistas à sua correspondente democratização. Sem ignorar a polêmica que tal afirmação carrega consigo, observa-se que tal deslocamento da participação e controle democrático encontra esteio e possibilidade seja na via jurisdicional, seja na via da organização político-institucional e administrativa da Justiça.
Pela via jurisdicional, estamos a nos referir tanto às diversas experiências de países latino-americanos, e até dos Estados Unidos, de autonomia das jurisdições indígenas e outras experiências de justiça comunitária, até as práticas de jurisdição dialógica inseridos em marcos mais tradicionais da justiça estatal. Pela via da organização administrativa, por seu turno, estamos a refletir sobre inovações político-institucionais como, por exemplo, a implementação de práticas de orçamento participativo e ouvidorias externas em todas as instituições do sistema de Justiça, a começar pelo Poder Judiciário.
A ministra parece se dar conta dessa agenda. E ela tem trajetória consistente na advocacia, na docência e na magistratura para compreender a ordem de prioridades que deve conduzir essa agenda. Por isso ela diz que não basta reformar o Judiciário, “faz-se urgente transformá-lo”. Ela está atenta à realidade de ensimesmamento que o Poder vivencia, encastelado e distante, e compreende que é necessário estabelecer ligações, concertações, embora reduza a dialogicidade desse processo à “comunidade jurídica”, mesmo com expectativa de alguma disposição homologatória, dirigida a uma manifestação do social que opere como referendo daquilo que se realize endogenicamente, e que apenas receba “a compreensão de toda a sociedade do que se está a propor e a praticar”. No limite, diz ela, “o que se proporá a transformar diz com o aperfeiçoamento dos instrumentos jurisdicionais”, confiante de que “cada proposta será transparente e imediatamente explicitada à sociedade”.
Por isso é necessário conduzir em linha crítica essas expectativas. Re-funcionalizar, modernizar, pode representar apenas mais do mesmo e de forma ainda mais excludente. Na pesquisa sobre a Observação da Justiça já mencionada, o que está em causa, para além do somente modernizado é o que o social coloca como sujeito com expectativa de transformação. Cito a partir do relatório daquela pesquisa: “A pesquisa não tinha a intenção de esgotar o universo representativo dos movimentos sociais, nem de sistematizar boas práticas, mas apenas de explorar visões sociais sobre o direito e a Justiça. A análise de dados permitiu que se verificasse que as organizações, movimentos e redes conhecem e buscam a Justiça pelos meios tradicionais de gestão dos conflitos pelo direito. No entanto, também permitem elaborar uma vasta categorização de estratégias não-convencionais de promoção da Justiça, com grande potencial de aprendizagem coletiva para direitos e cidadania”.
Finalmente, pensando num outro momento do Judiciário, chama a atenção o modo muito direto com o qual ela se dirige ao Juiz e o faz com a circunstância não ocasional de ter ali entre seus convidados para a cerimônia o ex-presidente Lula, que no dia seguinte seria confrontado a um modo inusitado de sofrer uma denúncia. Vale dizer, mais que inscrever uma personalidade em sua lista de convidados, ela sinalizava a um cidadão em vias de indiciamento que lhe assegurava as salvaguardas jurídicas estabelecidas na Constituição e, em última instância, a guarida correcional do Supremo tribunal Federal. Com efeito, ela diz no discurso: “É o juiz o depositário desta fé, garantidor da satisfação desse sentimento. Com homens lidamos nós, os juízes. O homem é a nossa matéria, sua vida, sua morte, seus sonhos, suas dores, suas alegrias e dissabores. A este dever nunca faltará o verdadeiro juiz, muito menos o juiz brasileiro, menos ainda este Supremo Tribunal, que atuará com rigor e respeito à Constituição e a todos os valores que predominam e que forjaram este ordenamento hoje em vigor”.