Do Estado, do Direito e da Política: reflexões – 08/01/2014

A Comissão Justiça e Paz de Brasília reproduz artigo de Samuel Pinheiro Guimarães publicado no portal “Carta Maior”.

Os conceitos de Estado, de Direito e de Política se encontram tão profundamente interligados que não se pode com proveito analisá-los de forma separada.

Do Estado

Reconhecendo as características, detalhes e diferenças da evolução de cada Estado nacional, pode-se afirmar que os atuais Estados surgiram de desagregação ou de integração, violenta ou pacífica, de Estados ou “unidades políticas” anteriores; de processos de colonização que importaram e implantaram estruturas estatais exógenas e de processos de descolonização, violenta ou pacífica, que herdaram instituições administrativas das Potências coloniais; de revoluções que herdaram e criaram estruturas estatais.

Os Estados nacionais de hoje (e do passado), apesar de seu nome,  muitas vezes são constituídos por populações de diferentes origens étnicas e nacionais, que foram submetidas à hegemonia de uma delas enquanto que certas nações se encontram dispersas em territórios de diferentes Estados. Fato importante é que, em realidade, foram muitas vezes os Estados, as organizações construídas pelas etnias ou classes hegemônicas, que vieram a criar as “nações” atuais e não o contrário e que fizeram equivaler à noção de Estado a de uma só “Nação”, quando, na realidade, a própria “Nação” atual é constituída por populações de etnias e culturas diversas. A frase de Sêneca, em carta para sua mãe Hélvia, revela que toda pretensão atual, de qualquer sociedade, à pureza racial já era, em sua remota época, absurda: “dificilmente se encontrará um só lugar (no Império Romano) ainda povoado por seus habitantes originais: em toda parte a população é miscigenada e de estoque étnico de origem estrangeira.”

Em todas as sociedades, desde aquelas de longa história soberana até aquelas que conquistaram recentemente sua independência, há características comuns nos primórdios dos respectivos processos de formação de seu Estado nacional.

À medida que as comunidades primitivas foram adquirindo a capacidade de cultivar vegetais e deixaram de ser nômades para se tornarem sedentárias, teve início a agricultura que caracterizou a economia e as sociedades até a Revolução Industrial.

A agricultura supunha o domínio e o estabelecimento permanente de uma comunidade em um determinado território, o que, de um lado, levaria à emergência da propriedade coletiva, e mais tarde da propriedade privada, e da acumulação de riqueza e de Poder por indivíduos dentro de cada comunidade e, de outro lado, à formação de núcleos urbanos, as primeiras cidades.

A diversificação de atividades dentro de cada comunidade primitiva e a possibilidade de acumulação de riqueza, que já existia nas sociedades pastoris e nômades, tornariam inevitáveis as disputas pela apropriação de riqueza.

Essas disputas, com sua violência e sua insegurança, tornavam indispensável estabelecer normas para organizar as relações entre indivíduos e entre os distintos grupos sociais: homens, mulheres, guerreiros, sacerdotes, mercadores, artesãos, lavradores, caçadores etc.

A primeira distinção que surge dentro das comunidades primitivas é entre, de um lado, homens adultos e, de outro lado, mulheres e crianças,   grupos esses naturalmente mais fracos e indefesos, vitimas de opressão durante milênios.

As diferenças de fertilidade dos solos e de possibilidade de irrigação levavam à disputa entre comunidades primitivas pela posse daqueles territórios que eram mais adequados para a atividade agrícola, por serem mais férteis e com nascentes, pela posse de rebanhos e pela aquisição de mão de obra escrava.

As disputas internas entre os diversos grupos sociais e os conflitos externos com outras comunidades levaram à emergência, no seio das comunidades primitivas, de grupos de indivíduos que, devido à sua força ou habilidade para a guerra, se destacavam na defesa de sua comunidade e, eventualmente, nos ataques a outras comunidades e que reivindicavam para si “direitos” especiais de posse de terras, de botins, de escravos.

A diferenciação de atividades e os conflitos com outras comunidades levaram à necessidade de normas e à formação de estruturas sociais de Poder capazes de organizar a sociedade para dentro e para fora e impor a obediência a essas normas por parte dos indivíduos.

Essas estruturas foram criadas pelos grupos mais poderosos em cada comunidade. Esses grupos procuraram fundamentar e justificar sua existência e seus privilégios não na sua força, mas sim como emanados de entidades divinas. Essas entidades, e seu culto, estariam relacionadas com o “controle” das forças da natureza e de fenômenos tais como a chuva, o vento, o sol, a fecundação, o nascimento, a morte e assim por diante, incompreensíveis para o homem primitivo, porém aspectos fundamentais na vida das comunidades mais antigas.

As religiões foram animistas em seus primórdios e assim continuaram durante longo tempo. Esta característica sobreviveu mesmo em civilizações sofisticadas como a grega, chegando aos tempos modernos de forma sublimada como ocorre, por exemplo, na devoção católica a santos protetores contra fenômenos naturais tais como raios e tempestades, contra doenças, ou propiciadores do amor e da saúde e intercessores junto à divindade máxima.

Estas estruturas sociais de poder que são os Estados primitivos diferem em sua organização e na sofisticação dos controles que exercem as classes hegemônicas (cuja composição evolui no tempo e tem a ver com a evolução econômica e social) sobre os demais grupos. A natureza essencial dessas estruturas é a mesma, qual seja a elaboração de normas e a manipulação de “ideias” sobre como se organiza a sociedade e sua relação com as divindades e o uso da força física para impor os interesses das classes hegemônicas no processo de apropriação de uma parcela maior da produção social de bens e de honrarias.

A escassez de dados sobre muitos desses aspectos nas sociedades primitivas e na Idade Antiga devido à ausência ou à precariedade de registros históricos, o que ocorre mesmo no caso de Roma, faz com que a atenção dos historiadores tenda a se concentrar nas ações e façanhas dos soberanos dos Estados antigos os quais, aliás, não somente se preocupavam como tinham condições de registrar seus feitos. A História tende a ser, assim, a história das classes hegemônicas e a romantizar ou a não examinar os mecanismos de seu domínio e de sua exploração das classes oprimidas.

A evolução dos Estados, isto é, dessas estruturas de costumes, de normas e de instituições de controle social, é um processo complexo e inter-relacionado que é influenciado pela evolução tecnológica, i.e, pelo crescente conhecimento das técnicas de produção de bens para a paz e para a guerra; pela evolução política, i.e das relações de força e de interação entre os distintos grupos sociais; pela evolução jurídica, i.e. pela crescente complexidade das normas que regem o convívio social, econômico e político entre indivíduos, grupos e classes que integram uma determinada sociedade

O Estado é, assim, o conjunto de normas, elaboradas pelas classes hegemônicas, e de “agências” que elaboram essas normas e as “fazem” cumprir se necessário pela força. Esses conjuntos de normas e de agências evoluíram historicamente na própria medida em que se desenvolveram as relações de produção e em que surgiram novas atividades e novas classes sociais a elas correspondentes e que em um processo de lutas foram transformando as normas e as agências do Estado. Mas o Estado era e é ainda hoje o resultado do embate das classes hegemônicas – ainda que dentro delas haja uma disputa permanente pela liderança – com as demais classes sociais para organizar as atividades sociais e para regular a distribuição dos recursos resultantes das atividades produtivas.

No caso dos Estados que surgiram da desintegração de impérios, como o Brasil, herdaram eles instituições coloniais transplantadas e, por vezes,  outras de sua própria sociedade, mas a formação de suas classes hegemônicas tem semelhança com a dos Estados que não surgiram da desintegração colonial.
 

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