NOTA TÉCNICA DA COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DE BRASÍLIA SOBRE O
ANTEPROJETO DE LEI ANTICRIME DO GOVERNO FEDERAL
“Ide e aprendei o que significam estas palavras: Eu quero a misericórdia e não o sacrifício (Os 6,6). Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. (Mateus 9, 13)”
“Se compreendêsseis o sentido destas palavras: Quero a misericórdia e não o sacrifício… não condenaríeis os inocentes.” (Mateus 12, 7)”
A Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília apresenta nota técnica com relação ao Anteprojeto de Lei “Anticrime” de iniciativa do Governo Federal, com vistas a contribuir com a reflexão necessária em relação a diversos aspectos da proposta que, em nossa compreensão, agravam o quadro de violações de direitos humanos e violência social, que lamentavelmente tem caracterizado o tratamento dado ao problema da segurança pública no Brasil.
A normativa enviada pelo Poder Executivo propõe alterar de maneira concisa 14 (quatorze) leis federais que tratam das matérias de direito penal e processual penal, sem antes estimular o necessário e plural debate com a sociedade civil, isto é, sem promover a discussão com os especialistas da área, nem obter a maturação do anteprojeto de lei em audiências públicas e seminários, firmando, dessa forma, um documento autocentrado e em descompasso com os predicados do Estado Democrático de Direito.
De pronto, salta aos olhos que um anteprojeto que causa significativas alterações ao ordenamento jurídico pátrio, anunciado oficialmente pela imprensa, em coletivas e entrevistas para os principais veículos de comunicação do país, sequer tenha sido acompanhado de uma exposição de motivos, para respaldar e esclarecer seu significado e justificativa, ou projetar seus impactos orçamentários e administrativos, bem explicitar os elementos técnicos, teóricos que norteiam tamanha inovação legislativa que, caso aprovada, transformará profundamente a vida da população brasileira.
Dentre a alteração de inúmeras legislações de longas jornadas de debate, o anteprojeto em discussão procura cambiar artigos do Código Penal de 1940. Ressalte-se que a última grande reforma no presente código foi realizada pela Lei 7.209/1984, em anteprojeto de redação de Nelson Hungria, cumprindo fazer menção à Comissão Revisora do projeto, na qual juristas do peso de Hélio Tornaghi, Roberto Lyra, Aníbal Bruno e Heleno Fragoso trabalharam incessantemente em uma legislação que foi contemporânea dos estudos científicos do direito penal[1], legislação que passou por seminários e debates contínuos entre sociedade civil e especialistas.
Cumpre salientar que a proposta ostenta um perfil assumidamente ultrapunitivista, a partir do endurecimento da legislação penal e da diminuição das garantias processuais dos réus, soluções essas que há tempos são demonstradas pela ciência penal como de apelo popular, porém inócuas para lidar com a complexidade dos conflitos sociais, mas com grande poder para inflar o sistema carcerário brasileiro já declarado pelo Supremo Tribunal Federal como padecedor de um “estado de coisas inconstitucional”.
Nesse sentido, o anteprojeto parte do pressuposto de que a lei controlará a sociedade, sem avaliar os reflexos secundários que as alterações legislativas terão no cotidiano da sociedade brasileira e no dia-a-dia da Justiça do país, e assim, no afã da punição desmedida, olvidando-se da misericórdia e da redenção, é dizer, do papel essencial de reinserção social das penas.
Pergunte-se: haverá justiça na sede de vingança?
Acrescente-se que o anteprojeto deixa transparecer a intenção de oficializar eventuais “lacunas” legislativas, que seriam preenchidas pela interpretação um tanto discricionária de agentes estatais, à margem da legislação pátria, naquilo que cientificamente se denomina ativismo judicial. Quanto ao ponto, chama à atenção a alteração legislativa que tende a esclarecer o que é, e quando pode ser utilizada a execução provisória da pena no Código de Processo Penal, algo que não tem qualquer disciplina no ordenamento jurídico pátrio, e tem sido aplicada por interpretação criativa dos magistrados brasileiros.
Não é distinto quando o anteprojeto procura oficializar convênios, acordos e compartilhamento de provas entre órgãos investigativos nacionais e estrangeiros, não exigindo qualquer previsão em tratado internacional assinado pelo Brasil com o ente conveniado ou qualquer formalização ou autenticação especial para o compartilhamento de tais informações.
As alterações propõem ainda a hipertrofia do Ministério Público, a partir da experiência anglo-saxônica do plea-bargaining, autorizando a proposição de acordos de não investigação ou mesmo de aplicação imediata da pena pelo Parquet aos acusados, a partir da confissão do delito pelo réu, o que ademais de fortalecer em demasia o órgão ministerial, potencializa a arbitrariedade da autoridade, uma vez que o acordo poderá (e não deverá!) ser oferecido. Não obstante, em um país de imensa desigualdade no acesso à justiça, tal proposta poderá transformar o instrumento em acordos forçados com réus fragilizados sem a devida assistência de seu defensor, servindo para, mais uma vez, favorecer os polos mais fortes da relação jurídica penal.
Quanto às suas decantadas impropriedades técnicas de redação, o texto cria novas excludentes de punição penal, a partir de expressões subjetivas como “medo” e “surpresa”, termos pouco técnicos e permeados de dubiedade, que empoderam a já hipertrofiada autoridade judiciária, possibilitando-a absolver ou condenar o cidadão em face da diferente experiência emocional vivenciada pelo magistrado.
No mesmo sentido, causa profunda preocupação que as excludentes do medo, surpresa e violenta emoção sirvam, para bem da verdade, como instrumentos que reforcem o preconceito e a perseguição de vulneráveis a partir da rotulação e da estigmatização social de raça/cor, orientação sexual, origem social, religião e gênero.
Ainda é importante mencionar que toda legislação criada no país deve estar de acordo com posições pacificadas nas cortes superiores e, por esse sentido, a melhor técnica desaconselha que temas em dissonância com decisões recorrentes, sumuladas e por muitas décadas assentadas, sejam apresentados como nova legislação, sob pena de gerar significativo conflito nos tribunais.
A despeito disso, a proposta estabelece o regime obrigatoriamente fechado em diversas situações, impondo o regime inicialmente fechado em outras e vedando as saídas temporárias aos aprisionados, o que se sabe, é vedado pela própria Constituição Federal, por violar o princípio da individualização das penas, consagrado no Art. 5º XLVI da CF, conforme também já decidido pelo STF.
No mesmo caminho, propõem-se ao estabelecimento prisional federal um sistema de execução penal típico do chamado Regime Disciplinar Diferenciado. Ocorre que o RDD possui atualmente um limite temporal (360 dias), e somente deve ser aplicado em caso de falta grave durante o cumprimento da pena, não havendo qualquer dispositivo legal que autorize o tratamento distinto para as pessoas encarceradas em prisão federal, o que também poderá acarretar tumulto às cortes brasileiras e tratamento desigual para cidadãos do mesmo país.
Como mencionado, a normativa elaborada pelo Governo Federal preza pela ambiguidade, dando significativa margem à interpretação do magistrado. É possível perceber esse padrão legislativo quanto ao endurecimento do crime de resistência que passa para penas de 6 (seis) a 30 (trinta) anos quando causar risco de morte à autoridade, novamente hiperinflando o poder dos agentes do Estado, que em regra tendem a reforçar o arbítrio estatal frente ao cidadão.
Por esse sentido, defendemos que a elaboração de uma melhor estratégia para o sistema penal brasileiro deve necessariamente passar por profundos debates com a sociedade civil organizada, com a Ordem dos Advogados do Brasil, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com os diversos órgãos de representação da Magistratura e com a Academia, até que seja finalmente debatido no âmbito do Congresso Nacional, em comunhão de ideais e espaço equânime para deliberação de problemas, expectativas, anseios e frustrações. A participação dessas entidades em longo e profundo debate se faz fundante para que qualquer alteração legislativa seja verdadeiramente democrática.
Ao contrário da temperança e razão que se espera de um operador do direito, o ordenamento proposto segue na contramão do pensamento contemporâneo das ciências penais e é um sério agravante para um país que vive relevante crise econômica e significativos índices de encarceramento. Lamenta-se, pois, que a proposta seja omissa no enfrentamento do problema do encarceramento em massa, e não avance na discussão da adoção de penas e medidas alternativas para lidar com o conflito penal.
Ante o exposto, clamamos para que não se fechem os olhos para o avanço das pesquisas, para as experiências bem sucedidas de administração do sistema penal em outros países, fazendo-se necessário um olhar voltado, de um lado, para as garantias constitucionais do cidadão e, de outro, para o direito à segurança pública do indivíduo, sim, mas evitando sempre as falsas promessas de um certo pensamento obscuro e de apelo imediatista no campo penal, que apenas fortalece o despotismo e a tirania, promotores resilientes da violência e das injustiças em nosso país.
Brasília, 12 de fevereiro de 2019
Comissão Justiça e Paz de Brasília – CJP-DF