Correio Braziliense, edição de 14/4/2017
Opinião, pág. 11
20 anos da morte de Galdino Pataxó:
símbolo para tempos de intolerância
José Geraldo de Sousa Junior
Em 19 de abril deste ano, o calendário simbólico brasileiro registra 20 anos da morte de Galdino Jesus dos Santos, o Galdino Pataxó. Natural da Bahia (1952), ele foi assassinado em Brasília, em 20 de abril de 1997. Da etnia pataxó-hã-hã-hãe, estava em Brasília por ocasião das comemorações do Dia do Índio, em 1997, e, com outras sete lideranças indígenas, levava suas reivindicações acerca da recuperação da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu, em conflito fundiário com fazendeiros da região (sul da Bahia). Depois de ter participado de reuniões com o então presidente Fernando Henrique Cardoso e com outras autoridades, com representantes de movimentos sociais de luta pela terra, entre eles o MST, por ser já muito tarde, não pôde entrar na pensão onde estava hospedado e resolveu dormir num abrigo de ponto de ônibus na avenida W3, Quadra 704 Sul.
Na madrugada, cinco jovens brasilienses de classe media atearam fogo enquanto ele dormia. Galdino morreu horas depois em consequência das queimaduras. Em sua defesa, durante o julgamento, os acusados disseram que o objetivo era “dar um susto” em Galdino e fazer uma “brincadeira” para que ele se levantasse e corresse atrás deles. Um dos rapazes disse à imprensa que ele e seus amigos haviam achado que Galdino era um mendigo e que, por isso, haviam decidido “fazer a brincadeira”.
A população de todo o Brasil repudiou essa bárbara manifestação de intolerância, com atos públicos em Brasília, no local do crime, que foi ressignificado como Praça do Compromisso, localizada entre as quadras 703/704 da Asa Sul. Nela existem hoje duas esculturas que lembram o evento: uma delas retrata uma pessoa em chamas e a outra representa uma pomba, o símbolo da paz. As duas esculturas foram criadas por Siron Franco, cuja obra artística está definitivamente ligada à temática dos direitos humanos.
Tempos de intolerância, na política e nas relações sociais, subjugam a convivência a hierarquias e a exclusões que desumanizam. Aprofundam o fosso que torna irreconhecível, no outro, a sua dignidade e o direito de reconhecimento de suas aspirações de acesso aos bens vitais e ao exercício compartilhado da função política. São tempos dramáticos, de enormes sofrimentos, de retração de expectativas, de escassez de carisma para a busca de superação dessas condições. Poucos políticos, no Brasil e no mundo, têm reconhecimento para exercer esse papel.
O papa Francisco está entre esses poucos e tem oferecido indicações fortes para que deixemos “de lado o ressentimento, a raiva, a violência e a vingança” (Misericordiae Vultus, nº 9), e promovamos “a superação da justiça na linha da misericórdia” (MV, nº 21) e para que, arrostando medos, “continuemos a trabalhar para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da exploração” (Discurso aos participantes do III Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Edições CNBB, Coleção Sendas, vol. 8, págs. 11-12). Essa mensagem é amorosa mas não conformista, ela é tolerante mas não condescendente.
Nos estudos de ciência política, há o cuidado de firmar essas distinções. Giovanni Sartori, morto há dias, assinala que, se somos indiferentes, não há interesse pelo outro, quem tolera tem crenças que considera verdades (não se trata de relativismo), por isso, permite que outros cultivem suas próprias crenças, ainda que as considere infundadas. Trata-se, ele acentua, de seguir critérios de “razoabilidade (a tolerância pede que os limites se estabeleçam por meio de agentes), sendo, portanto, recíproca (não estamos compelidos a sofrer danos), na medida mesma do princípio de não fazer mal a outros”. Em suma, diz Sartori, a tolerância permite “viver juntos na diferença e com diferenças”.
Essa é base do axioma proposto por Boaventura de Sousa Santos: “Temos direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza, da mesma forma como temos direito à diferença, quando a igualdade nos descaracteriza”. Em sentido aplicado o que se tem em causa é evitar que a aspiração legítima à diferenciação leve à discriminação. Embora possa em tese trazer algum benefício a uma minoria, fere a garantia do direito à equiparação de condições e de oportunidades. Assim como toda homogeneização das pessoas que fira seus direitos fundamentais à diversidade acaba por descaracterizar o humano na sua individualidade.
Na passagem do século 20 para o século 21, ainda não há nitidez do humano no rosto de um mendigo, como no rosto de um indígena. Quinhentos anos depois da Bula do papa Paulo III (1537), reconhecendo que indígenas são “verdadeiros homens” e não “animais brutos sujeitos” ao poder daqueles que “por cupidez”, agem “a fim de oprimir” Galdinos, territórios indígenas, quilombolas, sem-terra continuarão vítimas da intolerância se, de outro modo, não nos mobilizarmos com misericórdia, para a paz e para a justiça.
Em 20 de abril de 2017, às 18h, na Praça do Compromisso, via W-3 Sul, em Brasília, acontecerá um Ato Inter-religioso em memória dos 20 anos sem Galdino Jesus dos Santos. Promovem o ato o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), o Fórum Ecumênico ACT – Brasil, a Rede Ecumênica da Juventude, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (CJP-DF), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP). Estarão presentes povos indígenas que farão a dança ritual em homenagem a Galdino, haverá declamação de poesias, testemunhos, reflexões sobre o ódio enfrentado pelos indígenas brasileiros. O momento também será para reforçar a denúncia da violação dos direitos constitucionais e originários dos indígenas, bem como as políticas anti-indígenas do Estado brasileiro.