Saneamento Básico: Pobreza, Saúde e Meio Ambiente – 11/02/2016

Saneamento Básico:

Pobreza, Saúde e Meio Ambiente

Antonio Rocha Magalhães

CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. Ex-membro da CJP de Brasilia.

A Campanha da Fraternidade Ecumênica, de 2016, elegeu como tema a questão do Saneamento Básico. A escolha foi muito feliz, porque há poucos temas mais importantes para a vida humana do que o saneamento. Tanto do ponto de vista do mundo inteiro, de acordo com dados das Nações Unidas e do Banco Mundial, como no caso do Brasil especificamente ou de cada local, a questão do saneamento se sobressai como algo que se liga estreitamente à questão da pobreza, da saúde e do bem-estar das populações. A ligação com a pobreza é muito direta: os piores indicadores de saneamento básico – acesso à água potável, esgotamento sanitário e disposição de lixo – se encontram nas regiões e países mais pobres no Planeta. No Brasil, os piores indicadores estão nas regiões Nordeste e Norte e, especialmente, nas periferias pobres das cidades e nas zonas rurais.

O documento da Campanha da Fraternidade informa que existem 2 bilhões de pessoas no mundo sem acesso a saneamento básico. Essas são as pessoas mais pobres do planeta, que enfrentam mais problemas de saúde e vivem sob as condições mais precárias. É fato conhecido que muitas das doenças que afetam essas populações mais pobres são veiculadas por meios hídricos, devido à falta ou impropriedade dos serviços de saneamento básico. Muitas doenças estão associadas à água e às condições de higiene, como é o caso, presentemente, da dengue, da febre chikungunya e da zica no Brasil e em muitos outros países. Essas doenças são transmitidas por um mosquito, o aedes aegypti,  cujas larvas se desenvolvem em águas paradas e cuja proliferação poderia ser controlada com envolvimento da comunidade.

Uma dimensão importante do saneamento básico diz respeito à qualidade da água. Esse é um problema que afeta profundamente o mundo inteiro, em particular os países em desenvolvimento, como o Brasil. A poluição dos corpos d´água ocorre por vários motivos, entre os quais o lançamento de rejeitos de uso humano da água – como o caso de esgotos que são lançados sem tratamento nos rios, nos lagos e no oceano – e os rejeitos de uso industrial ou agrícola. É muito comum, por exemplo, que cidades lancem os seus esgotos nos cursos d´água, rio abaixo, prejudicando a coleta de água para a próxima cidade. Isso é um problema em várias bacias brasileiras, inclusive na região Sudeste, como é o caso da bacia do Rio Paraíba do Sul. No Nordeste, onde os rios ficam secos durante a estação não chuvosa, os rejeitos do saneamento básico e do lixo urbano se acumulam nos leitos dos rios, contaminam os lençóis freáticos e comprometem a qualidade de vida das pessoas. As atividades agrícolas geram rejeitos de fertilizantes e pesticidas que muitas vezes atingem os mananciais e contaminam as águas superficiais e subterrâneas. Além disso, o desmatamento das margens dos rios e riachos leva ao carreamento de elementos poluidores e de sedimentos para os cursos d´água. Embora isso tenha uma relação direta com o abastecimento d´água para as populações, diz respeito a uma questão mais ampla, da necessidade de gerenciamento adequado tanto da oferta como da demanda de água.

A Campanha da Fraternidade assume, corretamente, um conceito amplo para a questão do saneamento. Por exemplo, em nível mundial um problema crucial dos tempos atuais diz respeito à quantidade de lixo que é jogada nos oceanos, particularmente os sacos plásticos. Os rejeitos de plástico são um problema em todos os lugares dos oceanos e também nos continentes. No Brasil, por exemplo, muitas periferias e pequenas cidades estão cercadas por terrenos repletos de sacos e garrafas de plástico. Nos oceanos do mundo, há plástico em todo lugar. Há grandes manchas de poluição de plástico distribuídas pelos oceanos Atlântico (sul e norte), Pacífico (sul e norte) e Índico, numa área que totaliza mais de duas vezes o tamanho do Brasil. São cerca de 16 milhões de quilômetros quadrados onde é grande a densidade de plástico na superfície do mar, até uma profundidade de 2 metros, e que causa grandes impactos sobre a vida marinha e sobre a navegação. Muitas criaturas marinhas confundem o plástico com alimento e acabam morrendo.

No Brasil temos também problemas com o lançamento de lixo e esgotos não tratados nos oceanos. O caso da Baia de Guanabara é exemplar. Embora, já há anos, tenham sido feitos esforços para sanear a Baia, ela continua poluída com resíduos sólidos, como garrafas e sacos plásticos, e com rejeitos de esgotos. No momento em que o Rio de Janeiro se prepara para os Jogos Olímpicos de 2016, discute-se sobre os possíveis efeitos que a poluição da Baia poderá acarretar  aos competidores que praticam esportes aquáticos e que utilizam a Baia da Guanabara para suas competições. Também na Região Metropolitana de São Paulo os problemas de poluição dos cursos hídricos atingem níveis alarmantes. Diferentemente do que aconteceu em cidades como Londres, onde o Rio Tâmisa foi despoluído e devolvido para a comunidade, em São Paulo os rios Pinheiros e Tietê continuam totalmente poluídos e mortos, imprestáveis para uso e lazer da comunidade. Essa situação se repete em muitas outras cidades brasileiras.

O saneamento básico – água e esgotos – é um dos setores usuários de água em geral, conjuntamente com a agricultura irrigada, os transportes fluviais, a eletricidade, a pesca e a recreação. Por isso, temos de entender também a questão mais ampla, da oferta total de água e dos seus vários usos. Nas últimas três décadas o Brasil evoluiu muito em termos de gerenciamento integrado dos recursos hídricos. Um marco importante foi a aprovação da Lei das Águas (Lei 9433, de 1997) e a criação da Agência Nacional de Águas (ANA), no ano 2000. Antes disso, alguns estados como São Paulo e Ceará já haviam caminhado nessa direção. O Estado do Ceará, por exemplo, aprovou um Plano Estadual de Recursos Hídricos e  uma Lei das Águas do Estado antes do governo federal, e criou uma agência para gerenciar a oferta e a demanda de água no Estado (chamada COGERH – Companhia de Gerenciamento de Recursos Hídricos). O gerenciamento integrado dos recursos hídricos trata basicamente de otimizar a oferta e gerenciar a demanda de água, de forma participativa com os diversos usuários, através de Comitês de Bacias Hidrográficas. Inicialmente as águas superficiais são gerenciadas, mas com a continuação também as águas subterrâneas vêm sendo submetidas a gerenciamento, com o objetivo de maximizar a oferta, garantir a qualidade e administrar conflitos entre possíveis usuários. Conflitos podem ocorrer entre usuários urbanos e rurais (abastecimento de água para as cidades e agricultura irrigada, por exemplo), entre setores (como no caso de energia versus irrigação). Quanto ao abastecimento urbano, a ANA produziu recentemente um Atlas onde identifica as possíveis fontes de abastecimento para cada município brasileiro. O Atlas mostra, por exemplo, que 2502 municípios, equivalentes a 45% do total nacional, têm mananciais satisfatórios. Outros 2556 municípios (46%) precisam de ampliação dos seus mananciais, enquanto 471 municípios, ou 9% do total de municípios brasileiros, precisam encontrar um novo manancial. No Nordeste, onde é maior a escassez de água, 14% dos municípios precisam encontrar uma nova fonte de água.

Para a questão do abastecimento de água, há que se distinguirem as populações concentradas, que vivem em cidades, das populações dispersas, que habitam em zonas rurais. As soluções para o saneamento básico são diferentes. Enquanto nas cidades é necessário construir sistemas mais complexos, que chegam a envolver a adução de água a partir de reservatórios, a construção de estações de tratamento e a distribuição através de centenas de quilômetros de dutos subterrâneos, nas zonas rurais o abastecimento pode ser resolvido através de várias possibilidades mais simples, individuais, como as cisternas, os poços e os sistemas simplificados. Em casos de maior escassez de água, como nas secas que assolam muitas partes do país, especialmente o Nordeste semiárido, amplas regiões podem ficar sem fontes de água e passam a ser abastecidas através de carros pipas. Atualmente (início de 2016), existem cerca de 8000 carros pipas do governo federal distribuindo água para casas isoladas no Nordeste, inclusive para encher cisternas que foram originalmente construídas para receber água de chuva. Embora essa solução dos carros pipas tenha sido desenhada especificamente para abastecer a zona rural, na presente seca, que já dura 5 anos, já há falta completa de água também nas sedes de muitos municípios, de modo que os carros pipas também começam a abastecer cidades do interior do Nordeste. Os carros pipas levam água de reservatórios existentes para os consumidores finais. Atualmente, como os açudes do Nordeste, em sua maior parte, estão vazios ou com pouca água, os carros pipas vão buscar água cada vez mais longe, com viagens de mais de 100 km de cada vez. A qualidade inadequada da água afeta os carros pipas, não apenas por conta da situação de coleta do líquido como também por problemas de poluição durante o processo de transporte e de manuseio da água. Por isso, tem sido necessário pensar-se o problema da qualidade da água também na distribuição por carros pipas.

A Campanha da Fraternidade Ecumênica, em seu item 7, define dois caminhos para a abordagem do problema do saneamento básico: primeiro, o das políticas públicas de saneamento e de gerenciamento de águas, cuja responsabilidade maior cabe aos governos; segundo, através de mudanças de atitude dos cidadãos. Na verdade, os cidadãos podem se organizar tanto para pressionar por políticas públicas que são necessárias, mas também por realizar aquilo que só depende delas próprias, isto é, das comunidades. E há muitas coisas que a comunidade pode fazer, sem precisar esperar pelo governo.

A percepção do que significa saneamento básico varia conforme o interlocutor. Stricto sensu, quando se fala em saneamento básico, está-se falando de abastecimento de água para uso humano e de esgotamento sanitário para a destinação de dejetos humanos. Costumeiramente, inclui-se também na definição a drenagem de águas pluviais urbanas e a destinação de lixo sólido. A Campanha da Fraternidade de 2016, em seus itens 20, 32 e 33, entretanto, adota uma definição ainda mais ampla, envolvendo: acesso a água potável para consumo humano, acesso a esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos, drenagem de águas pluviais, controle de reservatórios e controle de agentes transmissores de doença.

O Serviço Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, traz anualmente informações sobre a situação no tocante a abastecimento de água, esgotamento sanitário e destinação de resíduos sólidos no Brasil. No tocante à cobertura, isto é, à percentagem da população brasileira que conta com o serviço de saneamento, os dados de 2013, último ano para o qual as informações estão disponíveis, indicam que, no Brasil, 82% das pessoas contam com acesso a abastecimento de água. No Nordeste, esse percentual cai para 72%. A menor cobertura está na região Norte, onde apenas 52% da população têm acesso ao serviço.

No tocante a esgotamento sanitário, a cobertura é bem mais baixa. No Brasil como um todo, apenas 48% da população tem acesso a serviços de esgotamento sanitário. Esse percentual é de 22% no Nordeste e de apenas 6% no Norte.

Há significativo problema de ineficiência na distribuição da água. Com efeito, para o Brasil como um todo, mais de um terço (37%) de toda água que é tratada se perde em vazamentos na rede antes de ser distribuída para os consumidores finais. No Nordeste as perdas de água tratada alcançam 46% e, no Norte, 54%. Em outras palavras, mais da metade da água tratada, na região Norte, se perde antes de ser entregue aos usuários finais. Esses são níveis de ineficiência muito elevados. Há um espaço enorme para ganhos de eficiência no abastecimento de água no Brasil, com base em comparações internacionais. Por exemplo, na cidade de Denver, em Colorado, nos Estados Unidos, as perdas no sistema são de cerca de 5%.

No caso da destinação de resíduos sólidos, a situação também é muito difícil. Foram levantados dados para 3.572 municípios. Destes, 416 municípios têm uma cobertura de atendimento que varia entre 11,6% e 50%. A maioria dos municípios com menor cobertura se encontram na região Nordeste. Outros 27,9% dos municípios têm cobertura entre 50% e 80%, 31,9% dos municípios têm cobertura entre 80% e 99,9% e 28,5% tem cobertura total, de 100%.

É grave o problema da coleta de lixo e da destinação adequada de resíduos sólidos, na maioria dos municípios brasileiros. Os lixões ainda são uma realidade em muitos lugares, com muitas pessoas que dependem deles para sua subsistência. Em realidade, a conexão entre pobreza e lixões nas cidades brasileiras representa um dos quadros mais degradantes da situação dos pobres no País.

Apesar de tudo isso e dos problemas que persistem, são significativos os avanços alcançados nas últimas décadas. O Brasil começou a investir maciçamente nos anos 70 em abastecimento de água, com a criação do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) e com o Banco Nacional de Habitação, que levou à estruturação de instituições e ao financiamento de saneamento básico em todos os estados. Nas últimas décadas, como já referido, foi feito um grande avanço no gerenciamento dos recursos hídricos, tanto sob o aspecto legal, como no tocante aos aspectos institucionais, financeiros e de programação. Mais recentemente, as novas Leis de Saneamento Básico (Lei 11445, de 2007) e a Lei de Resíduos Sólidos (Lei 20305, de 2010) estabelecem compromissos para serem alcançados por toda a sociedade, inclusive com a obrigatoriedade de planos municipais de saneamento e de resíduos sólidos em todos os municípios do país.

Embora a responsabilidade maior pelas políticas públicas na área de saneamento básico e destinação de resíduos sólidos seja do governo, um papel significativo pode e deve ser desenvolvido pela sociedade. Dois caminhos para atuação da Sociedade devem ser explorados e incentivados. O primeiro é pressionar pelo aperfeiçoamento, expansão e implementação de políticas, programas, projetos e pelo aumento da eficiência por parte dos poderes públicos e provedores de serviços. O segundo é desenvolver atitudes de mobilização e cidadania, porque há muitas coisas que podem ser feitas pelas próprias comunidades.

No tocante às Políticas Públicas, como visto acima, muitos progressos foram feitos nas últimas décadas. O arcabouço legal se expandiu, novas instituições federais e estaduais foram criadas e avançou-se no planejamento, com planos e programas destinados a expandir e melhorar a cobertura. Os municípios são agora obrigados, por lei, a terem um plano de saneamento básico e outro plano de destinação de recursos sólidos, buscando universalizar a cobertura dos serviços. No governo federal, há recursos do FGTS e do FAT que são destinados para essas áreas. A preocupação com os municípios se justifica, porque é aí que se manifestam os problemas de saneamento e de lixo e é aí também que devem localizar-se as soluções.

Com relação às atitudes das pessoas, há muito que pode ser feito. Há muitas questões de saneamento básico e de destinação de resíduos que podem facilmente ser resolvidas pela sociedade. Não é necessário ficar de braços cruzados, esperando que o poder público venha resolver os problemas da comunidade. A sociedade organizada pode, efetivamente, cobrar mais eficiência e mais eficácia do poder público e pode, sobretudo, adotar certas atitudes em nível local de que resultem melhores situações de higiene, de acesso à água e de produção e destinação de resíduos. Um exemplo é o problema da acumulação de sacos plásticos nas periferias das grandes e pequenas cidades. Em primeiro lugar, a ocorrência desse fenômeno depende de comportamentos das pessoas, que jogam rejeitos nas vias urbanas e áreas circunvizinhas. Uma das consequências, muitas vezes, é o entupimento de bocas de lixo, fazendo com que as menores chuvas acabem causando grandes alagamentos. Segundo, as comunidades poderiam se encarregar de fazer a limpeza dessas áreas. Para isso, a organização da comunidade é fundamental. A mobilização de lideranças locais direcionada para a solução de problemas da comunidade pode render resultados muito importantes. A Campanha da Fraternidade Ecumênica e as igrejas, que estão em todos os rincões do território nacional e têm contato direto com todas as populações, podem ser instrumentos muito importantes nesse processo.

Referências:

Brasil. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2013. Brasilia, 2014.

Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016. Casa Comum, Nossa Responsabilidade. CNBB/CONIC, Brasilia, 2016.

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